A arte de ajudar, segundo Hellinger, se sustenta em uma compensação: a retribuição por se ganhar a vida. Como não se pode recompensar os pais diretamente por este presente sem precedentes, se “paga” esta dádiva, ajudando aos outros, como um rio nutrindo suas margens em seu caminho para o oceano. Também, quando recebemos algo de alguém, que não nos é superior, damos algo em troca.
foto de Sebastião Salgado
No
primeiro caso, compensa-se o que se recebeu dos pais dando para os filhos, se
dedicando ao trabalho com afinco, ao papel que se quer assumir na sociedade e a algum
serviço desinteressado. Estas são formas de compensar o que se ganhou dos progenitores,
professores, pessoas dedicadas à vida pública, pessoas que arriscaram ou perderam a vida por nós, etc. Pessoas que são ou estão em
papel superior e de que recebemos algo que não temos condição de pagar
diretamente. Não se tem condições de pagar a vida que se recebeu dos pais diretamente para eles, só promovendo a vida para outras pessoas, tendo filhos e/ou estando a
serviço da vida em suas ações. Esta noção libera o caminho para a humildade e o
seguir em frente e, em casos mais difíceis, para não se submeter às chantagens
parentais.
No segundo caso, há as trocas de igual para igual: nas parcerias românticas
e de amizades, com outros adultos que estejam em pé de igualdade, cônjuges, etc.. O próprio
pagamento por um trabalho é uma forma de compensação promovendo um movimento, com o qual ninguém fica maior do que o outro. Muitas relações amorosas e de amizade se quebram
por esta diferença entre o dar e o receber. Por exemplo, ao impor e exigir muito quando
alguém quer e tem o direito de trocar pouco ou dar muito sem saber receber
nada. Portanto, há REGRAS PARA A AJUDA gerando movimento. Quando estas regras
não são observadas começam os emaranhamentos que desorganizam a ordem no
sistema familiar e social.
Bert
Hellinger chegou a estas ORDENS DA AJUDA (livro publicado em 2005)[i] observando
os movimentos da alma e as ações que tinham força nas Constelações Familiares. Pode-se dizer que elas “hidratam” os vínculos pelo
correto ato de dar e receber, que acontecem em dois níveis:
1)
entre pais e filhos, ou entre superiores (ex: professor, babá, bombeiro) e
necessitados (ex: aluno, criança, acidentado). Neste último caso não há
equiparação, mas um rio que recebe as águas da ajuda, e não podendo devolver à
fonte, deixa as suas águas fluírem para nutrir algo adiante;
2) e o de igual para igual, quando há
reciprocidade. Como no caso dos casais e amigos;
“O ajudar dessa maneira aumenta o que foi
presenteado. Aquele que ajuda é tomado e inserido em algo maior, mais rico e
duradouro” (Hellinger, 2008: 14).
Se,
realmente se toma a vida e o cuidado dos pais, aguentando o sentimento de culpa de receber a vida sem poder pagar isso
para eles, tem-se a necessidade de passar algo de bom para frente, e quem
recebe esta ajuda deve realmente
necessitar e querer o que se tem para dar. Não se pode impor a nossa
ajuda a alguém. Nesta condição se sustenta a primeira Ordem da Ajuda.
Eu
tomei a liberdade de dar alguns nomes para as ordens, mantendo o cerne do que o
Hellinger observou e compartilhou:
1) PRIMEIRA ORDEM DA AJUDA -
IMPECABILIDADE
ENTRE O DAR E O RECEBER
Dar
o que se tem, “e somente esperar e tomar o que se necessita”
(Hellinger 2008: 14). Dar o que não se
tem ou tomar algo que não se precisa causa desordem. Também exigir de alguém o
que ela não pode e não quer dar ou dar para alguém algo que ela mesma pode dar
para si mesma ou tem que carregar e fazer por si mesma desrespeita o equilíbrio
entre o dar e o receber.
Assim,
aquele
que se submeter aos limites do dar e receber cria força, porque trata a todos e
a si mesmo com impecabilidade.
Como disse Don Juan Matus, mestre
de Castañeda, "os Guerreiros não se ajudam, não tem compaixão por ninguém.
Para ele, ter compaixão significa que você desejava que o outro fosse como
você, e você o ajuda só para isso. A coisa mais difícil do
mundo é um Guerreiro deixar os outros em paz. A impecabilidade do Guerreiro é
deixar os outros como são, e apoiá-los no que forem. Isso significa,
naturalmente, que você confia que também eles sejam Guerreiros impecáveis.”
Com isso, chega-se a segunda ordem:
2) SEGUNDA ORDEM DA AJUDA - A ARTE
DA ESPREITA
Esta ordem se funda no aceitar e se submeter às circunstâncias da pessoa, sem compaixão. Isto não quer dizer frieza diante das doenças hereditárias,
consequências de acontecimentos, da culpa de alguém, mas apoiar até onde o
destino dela permite. Isto é discreto e tem força.
Esta força está lá no silêncio da relação entre ser vivo e
suas circunstâncias. Nisso, como diz Maturana, se conserva a correspondência
estrutural entre o organismo e meio (Maturana,
1997: 72) . Ao negar as potencialidades criativas entre a pessoa e seu
destino - suas circunstâncias -, enfraquece-se a ajuda, o ajudante e aquele que
busca a ajuda. Neste caso o ajudante se acha maior que o que busca ajuda, como
se fosse os seus pais, e não se pode mais ajudar.
Portanto, o ajudante nas Constelações Familiares nunca é
maior ou menor do que aquele que busca ajuda. E é por isso quem constela não é
o constelador, mas o constelando. Diz-se, “eu fiz a minha constelação”, não se
diz “eu fui constelado”.
Eu diria que aqui a frase seria: Eu te vejo e às tuas circunstâncias,
sem reduzi-los aos meus desejos de te ajudar e aos teus desejos de ser salvo do
que pode te dar força.
Nesta postura, chegamos à terceira ordem:
3) TERCEIRA ORDEM DA AJUDA – MOVIMENTO DA ALMA
Esta é a ordem que diferencia a Constelação Familiar e seu
movimento da alma da psicoterapia habitual.
O ajudante se coloca como adulto e trata aquele que busca
ajuda como adulto. Com isso ele não faz o papel dos pais, e recusa que a pessoa
o coloque na posição de filho ou necessitado. É preciso CORAGEM, muito AMOR e RESPEITO, para desapontar a pessoa que
busca o pai e a mãe no terapeuta, assim como coragem e humildade para ser criticado
como duro e insensível ao fazer isto. Porque não é dureza, é fazer aliança com o que
escapa ao nosso controle, onde tem mais força. Toda pessoa que força o outro a
cuidar dela atua como uma criança exigente em relação aos seus pais.
Onde está a maior força, no adulto que se faz de criança
exigindo o que o terapeuta, cônjuge, amigos, não podem dar? No terapeuta,
cônjuge, amigo que trata o que precisa de ajuda como criança, indicando mil
técnicas para que ele “melhore”? Ou naquele que aceita o seu próprio destino e
no terapeuta que o apoia em seu destino se abrindo para um movimento que leve à
solução?
"Muitas vezes a solução
propriamente dita não vem à luz, mas apenas o movimento em direção a ela. Isso
já é o suficiente. Não se procura, portanto, um fecho. Quando o decisivo vem à
tona, isso atua. O trabalho se torna muito mais modesto, muito mais forte, com
muito mais respeito pela pessoa e também pelas forças maiores que determinam as
nossas vidas e as dos outros" ( Hellinger, 2008).
A sensação desta ordem me soa como o
amor: “não
dá para explicar as razões do coração, só se sabe que o amor atua e com ele
algo acontece”.
E o amor se sustenta na alma
coletiva:
4) QUARTA
ORDEM DA AJUDA: TODOS TÊM DIREITO AO PERTENCIMENTO
Não se pode ver a pessoa que é ajudada como um
ser isolado, mas como parte de um sistema onde todos devem ser honrados e têm o
direito ao pertencimento. Para isso é preciso saber quem pertence e quem não
pertence ao sistema. A desordem aqui começa quando se exclui alguém, como
talvez toda a família da pessoa ajudada faça, aprofundando a dor sistêmica. Se
esta empatia sistêmica for sentida como dura pela pessoa que está constelando, porque
inclui quem ela acha que deveria ser excluída, ela se coloca como criança e não
como adulta.
Num caso dificílimo e extremo, quando
um pai abusa de uma criança, se o constelador julgar este pai e o excluir, não
há solução. Ele tem que saber que este pai pertence ao sistema, tem seu lugar,
é responsável pelo o que fez, e é o pai desta criança. Não se trata de perdoar
– isto é arrogante – nem de encobrir o que foi feito. Trata-se de não excluí-lo
nem julgá-lo no coração, mesmo que a criança tenha que conviver afastada do pai
por segurança. Esta é uma visão sistêmica e não pessoal. A criança se sente
mais segura com quem coloca o pai no coração do quem julga seu pai como
criminoso. Ela é filha dele. Ele pode pagar a pena do que fez, mas no coração
do ajudante ele tem um lugar, não por benevolência e santidade, mas porque
sistemicamente ele pertence e a alma busca reconciliação.
A melhor postura que consigo imaginar
para esta ordem é abrir o coração para todos da
família, sem julgar, porque no nível da Grande Alma todos têm o direito de pertencer
e de arcar com o que fizeram.
5) QUINTA ORDEM DA AJUDA – A RECONCILIAÇÃO
A reconciliação, sobretudo com os
pais. O ajudante ao colocar a pessoa excluída no coração o aceita como ele é.
Quando, por diversos fatores, o ajudante escolhe ficar contra um dos pais, até
porque a opinião pública assim o determina, ele favorece o conflito. A
Reconciliação não é cega e não retira de ninguém sua responsabilidade, mas ela
une no coração o que estava separado.
As tragédias são sempre pautadas em situações
onde a reconciliação é impossível. Ela tem uma chance, quando no coração - sem
nenhum sentimento de compaixão, perdão, pena ou negação – todos pertencem.
Assim, eu tenho aprendido que a reconciliação, quando a alma encontra a sua cura, é um
caminho sereno e fértil, ou árduo e duro, no meio de dois polos aparentemente
separados.
Finalmente, COMO SE DEIXAR ATUAR POR ESTAS ORDENS?
A postura
do facilitador da Constelação e da pessoa que constela se abre a estas ordens
quando se centra e abre mão do querer saber, do medo, da intenção e da compaixão.
Escrevi mais sobre isso aqui.
As Ordens
da Ajuda acontecem por meio da percepção durante o processo e não por meio do
pensamento, portanto não devem ser aplicadas de forma rigorosa nem metódica.
Elas surgem como um rio seguindo o seu próprio curso. Para isso, como foi dito
acima, é necessário estar centrado, sem pressupostos, intenções, medos ou
compaixão. É preciso não saber e principalmente não saber o que virá e se expor
aos acontecimentos. Isto não é fatalismo, mas se abrir para dimensões ainda não
conhecidas onde algo atua.
É como
aquela pequena poça, que um dia foi o mais corajoso dos rios desbravando vales
e montanhas. Ele só se abriu a novas soluções depois de ter enfrentado sem
sucesso o indecifrável deserto escaldante, que secou quase toda a sua água.
Nesta hora, uma nuvem, totalmente diferente do que ele jamais sonhou, surgiu
levando-o acima do deserto até o topo de outro desfiladeiro onde desaguou como
chuva.
A Arte da
Ajuda, então, não é um manual de regras, mas um rio que se sustenta no próprio exercício 1) da impecabilidade
entre o dar e o receber, 2) da arte da espreita que vê e aceita sem compaixão
ou julgamentos, 3) do movimento da alma, quando algo atua porque não se tem
intenções nem se busca explicações, 4) do direito ao pertencimento de todos e 5)
da reconciliação, que não é “fofinha” nem cega, mas aceita o fato de todos
pertencerem e que, em um nível muito profundo, tudo se harmoniza no amor do
Espírito.
foto: não sei quem é o autor
[i] HELLINGER,
Bert. Ordens da Ajuda. Tradução de Tsuyuko Jinno-Spelter. Patos de Minas:
Atman, 2005.
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