20 de jan. de 2018

65) Ruídos Ancestrais: a importância de conhecer a nossa história


A jornada pelos roteiros ocultos que atuam sobre nós está calçada em  dinâmicas familiares ancestrais. Vivi está experiência quando algumas moças ao lado da casa silenciosa, onde sou acolhida  quando estou em Porto Alegre, gritavam esganiçadas e, para a minha raiva, estavam sem alma como se faltasse alegria verdadeira naquela euforia festiva. Mas era eu quem estava surda para o que diziam. 


Encontro do Historias aqui no RJ em 2018



Sobressaltada e não querendo me estressar, fui ler a dimensão histórica do processo de análise no livro “Archetipal Dimensions ofthe Psiche” da Marie-Louise Von Franz. Em seu divã, a psicanalista junguiana testemunha que cada indivíduo carrega dentro de si nas camadas mais profundas da sua psique, “todo o passado histórico de seu povo e até da humanidade como um todo”.

No sonho de um paciente italiano, por exemplo, apareceu Hermes, ao invés do anjo da morte do cristianismo, anunciando uma doença que tiraria a sua vida. Quem entra no Uffizi em Firenze sabe muito bem quem são os Deuses da Itália. Em outro analisando coreano de Von Franz surgiram temas xamânicos pré-budistas. Nos próprios sonhos da analista ela tomava vinho com ancestrais medievais. Nos meus sonhos me visitam o mar e filhas indígenas. Tenho duas bisavós guarani e tupinambá, materna e paterna. E os Guaranis têm uma ligação simbólica bem forte com o mar - e eu nem sabia disso.

Em teus sonhos, quais os temas ancestrais te visitam até as suas raízes?



O sonho de um analisando mexicano revelou para Von Franz sua ligação com os Astecas e com ela uma mágoa de 4 séculos. Este encontro transgeracional lá nas camadas subterrâneas do seu psiquismo o liberou de uma desorientação neurótica atual. Ele não podia revelar suas origens graças ao racismo do meio em que vivia, assim como não podia acessar sua história graças à aniquilação da cultura de seu povo por Cortés com sua missão pseudocristã há séculos atrás. Ao reconhecer estes estratos profundos de sua história pessoal/coletiva, pode reconciliar com a força dos símbolos de seus antepassados e até dos símbolos cristãos que os incorporaram.

Nas Constelações Familiares com temas de guerras, a cura pode surgir quando se olham os mortos com amor, como nos mostrou o Hellinger, mas também quando se reconhece, por exemplo, no nome de um Santo ou guerreiro dado a um neto ou a uma bisneta a história pregressa. São como a senha oculta que se conecta com a cultura destroçada de um povo. Assim não só choramos e olhamos com amor a morte dos dois povos que guerreavam, reconciliando no coração nosso parentesco de sangue com tudo o que existe, mas também nos conectamos ao "fio da meada" perdido da nossa história, guardado naquele nome que passa de pai para o filho ou do mito de um povo para as futuras gerações.

Esta conexão com a nossa cultura e a nossa cultura ancestral funda a espinha dorsal da nossa identidade e de todo um povo, como diz P.R.Sarkar. E ele evidencia este aforismo ao mostrar como o mercado estrangeiro se impõe sobre outra cultura quebrando a espinha dorsal daquela gente, invisibilizando-a ou criminalizando quem se quer dominar.

Fazemos da mesma forma quando desconsideramos a família e valores do cônjuge com a intenção de submete-lo/a aos nossos valores, ou quando fazemos ou sofremos alienação parental, ou mesmo quando achamos que uma das nossas raízes não presta. Acontece também quando se ataca os centros de umbanda e candomblé, ou se rouba a terra e aniquila outros rituais e símbolos dos povos que se quer subjugar.


Karstadt. Personal Identity 2003-14. 
Self-portraits with sewn-in original documents, birth certificate, SIM cards


Desta forma, vagando sem identidade e com o nosso psiquismo sedento por achar uma plataforma cultural para se manifestar e continuar crescendo psiquicamente e espiritualmente – natureza de nossa mente, segundo o yoga -, somos conduzidos às compras nos santuários dos mercados, como se lá houvesse algum pontilhão para a nossa identidade se fundar e a nossa neurose sanar.

Consumimos então plastic food, bebemos como se Dionísio pudesse chegar e se rebelar contra as opressões, fazemos filas para a última geração do iphone e imitamos os semideuses do cinema e da televisão.  E isso é tudo o que os juros dos cartões de crédito, o lucro descabido dos bancos, os patos gigantes, os senhores da guerra precisam. Todos os vampiros que surgem em épocas de transições [i] precisam da nossa cabeça vazia, nocauteados, sem capacidade para fazer trocas simbólicas, dessimbolizados e sem raízes, para continuarem sugando a nossa energia, inclusive na forma de dinheiro.

Dinheiro muitas vezes conseguido numa profissão que odiamos e nos neurotiza mais ainda - hiato entre quem somos e o mundo, preenchido com um modo de vida sem sentido, mas que dizem e impõe como bom e o certo. E “ai” da gente se não tivermos carteira de trabalho, que agora querem tirar.

Chega, então, aquele momento diante daquela pilha de roupas novas, 10 diplomas e 5 crushes que nos perguntamos quem somos afinal? Para que tudo isso se não encontro um sentido de vida? Nesta hora alguns de nós buscam um caminho espiritual, outros, terapia e ainda outros alguns medicamentos, drogas ou mais consumismo ainda. Se estamos afinados com a nossa cultura, a terapia pode ajudar a escapar do vazio, se além disso estamos em ordem com nossos pais, o caminho espiritual é uma benção. Mas para muitos de nós falta ainda alguma coisa, sem a qual não há alívio: o contato reverente com a nossa história e cultura ancestral.

Como estas raízes são feitas de arquétipos, elementos primários da mente humana, a forma de acessá-las é conhecendo a história, os nossos mitos e contos afins, assim como ter acesso ao princípio feminino e masculino e suas várias facetas. E aí está outro desafio: várias facetas do princípio feminino foram banidas na nossa cultura. O princípio masculino se mantém, distorcido é verdade, mas o feminino tem sido banido.



Desde Lilith, aquela “safada” substituída por Eva bela, recatada e do Lar, que este princípio foi demonizado. O curioso é que Eva escuta a serpente, que é a Lilith demonizada no mito do paraíso, e tudo fall a part. Nossa cultura cristã é fundada numa queda por causa de duas mulheres e um homem facilmente seduzido. Eu consigo ver esta passagem mitológica no que aconteceu politicamente no Brasil em 2016.

Mitologicamente, então, o corpo de Cristo subiu aos céus, mas o corpo da mulher onde o lado instintivo da vida se apresenta em toda a sua pujança nos nascimentos, não! Religião e instinto não são polos opostos, mas aqui no Ocidente e em outras tradições viraram inimigos e, claro, a mulher, a serpente e a natureza, devem ser torturadas para revelar os seus segredos, segundo Bacon. Na ciência a polaridade cultura e natureza se estruturou sem reconciliação e o corpo e a mente não mais se encontram. Na revolução industrial os homens têm acesso aos meios de produção e então a um salário, mas a sua força de trabalho foi quebrada em vários eixos para o lucro do patrão. As mulheres e tudo o que faziam artesanalmente também é industrializado, então seus afazeres tão necessários não têm mais importância na nova ordem que surgia, e como o seu trabalho de cuidar da família não é visto como força remunerável no mundo capitalista, MAS SÃO, seus esforços ficam invisíveis diante de toda riqueza construída! 

Haja constelação empresarial onde a esposa e a mãe surgem como a solução que não era nem vista!

 Sem falar que a saída do campo para a cidade desenraizou homens e mulheres. Sem acesso aos mitos, desconhecendo a nossa história,  mergulhados em trocas de mercado sem trocas de sentidos, com o corpo e os saberes cindidos e com várias dimensões do feminino negadas, caminhamos para o abismo? Como é que se pode reconciliar com o que foi ruído?

Bem, os contos de fada estão cheios de Reis doentes que esperam que um dos filhos liberte uma princesa para fazer um novo reinado. A questão é que uma nova ordem surge e não mais a antiga, incorporando aqueles que um dia foram excluídos.

As mulheres aqui ao lado pararam de gritar dez minutos depois de me acordarem a meia-noite, mas as que estão em mim ainda não! Só consegui escutá-las graças as bacantes que eu, soberbamente, critiquei. São 7:44 da manhã. Preciso acordar!






[i] Quando a neurose é total e o psiquismo não tem respaldo na cultura.

1 de jan. de 2018

64) A Jornada de Iniciação Masculina

JOÃO DE FERRO, BOYHOOD e CAPITÃO FANTÁSTICO
A Jornada de Iniciação Masculina

Mônica Clemente (Manika) 

(tem spoiler)


O texto abaixo é sobre a jornada masculina, durante a passagem do reino da mãe para o reino do pai, segundo Robert Bly [i] em seu livro João de Ferro, analisada nos filmes Capitão Fantástico e Boyhood. Para os homens, de acordo com relatos de amigos meus que leram o livro de Bly ou fazem o Movimento Guerreiros do Coração, é uma possibilidade de acessar os arquétipos, símbolos e desafios do processo de individuação masculina. Para as mulheres uma esperança de reencontrar seus parceiros, seus limites e sua relação com os homens.

Como toda boa obra, o filme Capitão fantástico, dirigido e escrito por Matt Ross, tem dois temas permeando a narrativa. Um mais visível e outro subterrâneo. O roteiro enfoca a  criação dos filhos contra a decadência da dessimbolização da civilização ocidental. Uma civilização que optou por banir as trocas simbólicas [i] que dão sentido à vida, ajudando o autoconhecimento, por trocas de mercado. E, em paralelo, revela outra história: a jornada extraordinária de deixar de ser um menino para virar um homem. De sair da esfera da mãe para ir para a esfera do pai. 

O despertar de um homem começa cheio de potência, já na primeira cena. E ele será desafiado até o final do filme, quando o maculino, já na esfera do pai, não perde a conexão com sua doçura e sentimentos  para seguir em frente.




Em Boyhood, do maravilhoso cineasta Richard Linklater, a trajetória de um menino até a sua juventude termina com um horizonte um pouco vazio de sentido e muitas possibilidades a partir desta falta. Há uma certa melancolia no céu de fim de tarde. A história em segundo plano também fala da formação de um homem, mas no mundo dessimbolizado. Tanto é que a mãe do protagonista, apesar de toda a sua emancipação conquistada num mundo machista de homens-crianças, também está  sem os aliados simbólicos para ajudá-la a criar sentido ou passar para novas fases da sua vida. 

O que faltava, propositalmente, em Boyhood, era o elo com o mundo arquetípico masculino no protagonista e em seu pai. E o elo com o mundo feminino na mãe dele. Ou seja, a passagem de um menino para a vida adulta na sociedade atual (inclusive porque Boyhood foi filmado ao longo dos 12 anos da maturação do ator mirim), está sem a potência do homem, nos papeis de pai e de marido, porque ele é ausente. O filme parece que se passa todo naquela fase do conto João de Ferro, segundo Robert Bly, quando a bola de ouro do príncipe fica presa da jaula do homem selvagem e não pode mais ser resgatada, a não ser que ele busque a chave debaixo do travesseiro da rainha (mãe) e vá fazer a sua jornada masculina.

 Estas lacunas, brilhantemente reveladas na película de Linklater, pretendem ser superadas nos métodos de criação dos filhos do Capitão Fantástico.


Ellar Coltrane durante os doze anos de gravação do filme Boyhood

Aquele rapaz sensível e receptivo, artista e carismático de boyhood foi lançado ao mundo sem a força do homem selvagem, que nenhuma barba lenhador vai conseguir suprir. Talvez esta moda seja uma esperança – que não funciona sem seu contexto simbólico e ritualístico - de poder acessar um elo perdido com a masculinidade, que a revolução industrial e a moral religiosa trancafiaram em seus porões. 

Há, segundo Bly, 5 (cinco) aspectos da masculinidade que são representadas pelos cabelos do homem selvagem em João de Ferro (que aparecem com força nas imagens do Capitão Fantástico). Eles foram suprimidos na civilização ocidental de diversas maneiras. São eles, por exemplo:

1) O espírito caçador que liga os homens aos seus ancestrais. Não adianta transpor esta faceta caçando mulheres ou virando um alpinista social.  Neste estágio, o menino quer caçar mesmo. Muitos de nós, eu inclusive, não suporta este estágio do masculino. Mas, segundo Bly,  ele surge em algum momento com estilingues e passarinhos caídos e, depois, é integrado como uma conexão saudável com os instintos de sobrevivência. 

2) Há, também, o surgimento de um temperamento mais quente, como fogos de artifícios que, simbolicamente, lembram a energia masculinas, segundo Bly.

3) Tem a impulsividade apaixonada, que é muitas vezes punida rigorosamente em algumas religiões ou medicada como DDA. 

4) Há a espontaneidade.

5) E há o ciúme de tigre e a força de um leão. Todos estes “estágios” encaixotadas numa cadeira de escola que fixa nosso olhar num quadro negro, aos cuidados de boletins enviados aos pais. 

Algumas de nós, a partir dos anos sessenta - e eu me excluo totalmente deste desejo -, começamos a querer criar os nossos filhos homens com o lado feminino mais desenvolvido, para contrapor aquele tipo de homem que nos reprimiu. Para que a nova geração de homens pudesse ter mais sentimentos, desconsiderando que o masculino também tem sentimentos. Nem o homem se sentiu mais integrado em seu masculino positivo por meio desta estratégia, nem nós.

Nem o rifle dado pelo avô, no filme Boyhood, pode fazer esta passagem do menino para o masculino adulto, porque o presente não foi dado no contexto de um ritual. Nem no contexto da convivência do garoto com o pai e o avô. Como uma arma fará a vez da presença dos homens, como pai e avô, para um menino? Talvez o prenda naquele lado sombrio da masculinidade que torturou o planeta, dominou as mulheres e funda o imperialismo. 

Os avós, ou anciãos, segundo as antigas tradições e o Bly, são os reservatórios de sabedoria e a ligação com os ancestrais, capazes de ajudar a tarefa de individuação. Eles e as anciãs são desprezados em nossa época. 

O próprio carro que o pai do protagonista prometeu para ele, símbolo desta passagem da força masculina, foi vendido numa quebra de acordo e justificativas ultrapassadas. O pai, neste filme, ainda não aprendeu nada sobre o misterioso arquétipo de ser pai e ainda joga a culpa nas esposas. A presença forte da mãe também não ajudou o protagonista nesta tarefa de virar homem, embora tenha lhe garantido a sobrevivência e outras riquezas indispensáveis. 

Quase ao final, em uma cena memorável e mínima, que rendeu um Oscar à Patrícia Arquette, a mãe que ela interpreta também quer saber onde esteve o tempo todo em que não acessou um sentido de vida. Ela lutou para criar seus filhos. Ela lutou para achar um bom homem que nunca encontrou. Toda esta luta sem a parceria dos mitos e seus símbolos, narrativas que fornecem pistas para o herói e a heroína não se perder de si mesma.


Ellar Coltrane e Ethan Hawke - o pai.

Ela, a mãe, também não encontrou na cultura em que vivia um caminho para a sua feminilidade. O Feminino e o masculino não são o fim da nossa jornada, mas um dos meios da individuação. E isto não tem a ver com tutoriais de maquiagem e times de futebol que, dessimbolizados, não cumprem a função de nos alçar ao nosso centro.

Patrícia Arquette - Boyhood

E por falar em todas as mães que têm que criar seus filhos sem a presença do pai: como mulheres, temos limitações para a iniciação masculina. Por isso, o Robert Bly e o Capitão Fantástico podem nos ajudar a reconhecer estas limitações. 

Capitão Fantástico é um filme  sobre a iniciação do adolescente no mundo de sua masculinidade (não importa a sua orientação sexual). E sobre o que lhe foi roubado e ainda lhe causa dores. Feridas que o empurram em busca da solução.

A primeira cena do filme, e a forma como a câmera é usada, nos coloca dentro da selva em um ritual de iniciação masculina. Joseph Campbell diz que os homens, a partir dos anos 1930 do século XX, não passam mais por rituais que possam lança-los da esfera da mãe para a esfera do pai e da maturidade, permanecendo crianças. Milhares de mulheres, descontentes com este cenário, tentaram suprir esta lacuna em vão. 

Bly não só concorda com isso, como fala claramente que o conto dos Irmãos Grimm, João de Ferro, ensina sobre a saída da esfera da mãe para a esfera do pai, ao encontrar o Homem Selvagem por meio do contato com anciões. Com isso, ele não diz que as mães não são necessária para seus filhos homens, ou que são culpadas de algo em relação a eles. Seu objetivo é seguir as pistas de um conto de fada que trata da transição de uma fase da vida, quando os filhos, em uma certa idade, precisam sair da esfera da mãe para ir para a esfera do pai e depois, se for homem, ir para o mundo. 

Embora não seja o foco de Bly, a mulher também vai para esfera do pai e dos anciões na adolescência, mas deve retornar à esfera da mãe para depois seguir para o mundo. 

Bert Hellinger, um ancião quando descobriu as Constelações Familiares, mostra como o caminho para o pai, tanto para os meninos como para as meninas, é uma conquista e não algo dado e fácil de fazer como mostra o conto João de Ferro.

E digo mais, é um caminho quieto, como um novo engravidamento. O engravidamento de ficar perto do corpo/presença do pai para sinonizar com o corpo masculino, se o adolescente for menino. E perceber a diferença do corpo de um homem, como frequência mesmo, se a adolescente for uma menina.

Isso acontece no silêncio, nas atividade em conjunto com o pai ou avô, independente das conversas que se pode ter. Assim como na gestação, quando a criança se forma no ventre da mãe sem precisar de uma palavra para o milagre acontecer. A mãe não precisa falar nada para ser o icnonsciente do corpo do seu filho ou da filha. Por isso, não adianta usar a desculpa de que o pai é quieto e, portanto, difícil de estabelecer um contato verdadeiro. É ao contrário! 

Difícil mesmo é sintonizar com o pai num novo engravidamento de si mesmo, deixando o jovem corpo aprender novos registros do masculino. Para isso, não há necessidade de muita conversa, mas sim convivência. Portanto, filhos e filhas, se der, procurem o seu pai como um mistério e deixem esta convivência nascer você novamente.

E pais, procurem seus filhos. O menino precisa ir para esfera do pai para acessar o masculino, mas um pai precisa dos filhos para acontecer.

Como filhos e filhas, então, deve-se descobrir como chegar no pai e construir uma relação com ele. Qual a melhor forma? Como será este caminho? É arte pura`com ousadia. E, muitas vezes, precisa-se de ajuda de um bom psicanalista e até da Constelação Familiar, se há muitos emaranhamentos.
 
Às vezes, no entanto, é impossível se aproximar do pai se ele mesmo ou a mãe atrapalham a própria vida que nos deram. Ainda assim, não podemos excluí-lo do coração e não podemos caminhar para ele como se fôssemos amantes, terapeutas, mãe, pai, juízes, capangas da mãe ou vítimas vingativas. Se podemos ir até o pai é só como filhos ou filhas. Até quando cuidamos deles ao final das suas vidas caminhamos até eles como filhos e filhas.

É neste sentido que a não aparição da mãe em nenhuma cena do Capitão Fantástico, a não ser na memória de seu marido, ou morta e enterrada, ou sendo um corpo disputado para o sepultamento, eleva a jornada de Bo, um dos filhos do capitão, à conclusão de sua transformação para o homem adulto. 

Na vida real, o corpo de muitas mães cria pequenas explosões de rejeição em relação à aproximação do filho, quando ele se torna adolescente. E o pai se afasta um pouco, fisiscamente, da filha nesta fase também. É um ciclo necessário para esta jornada de amadurecimneto sexual.

Portanto, o adolescente menino tem que se despedir da mãe e ir para o pai. E isso se dá, segundo Bly, quando a mãe solta o filho, ou o filho tem coragem de soltar a mãe. Então, um ancião leva o menino para longe da família por um tempo, ensinando coisas de homens e também o desafiando a ponto de machucá-lo fisicamente.  

Neste filme, o avô dos seis filhos do capitão é o pai da mãe falecida. Ele também se vê fracassado na criação da sua filha, projetando a sua culpa no pai fantástico. Desta forma, imagina poder ter  uma nova chance ao exigir a guarda dos seus netos. Se, a princípio, ele é o “vilão” do enredo, com o tempo se torna o catalisador do processo de individuação do capitão, do seu neto  mais velho Bo e do Rellian, o neto mais novo. 

Por meio do confronto com este ancião, o capitão fantástico questiona pela "primeira" vez os seus métodos, às vezes, mais radicais do que a rigidez do avô. Lembrando que radical é tudo aquilo que eu não aceito no outro. A radicalidade, então, não está no que um pai ou mãe escolhem para os filhos, mas de achar que ele, o capitão, na condição de pai pode emancipa-los sem que chegue o momento de confrontar a si mesmo, seus erros e acertos, e ser confrontado pelos filhos. 

O avô também é poderoso e bem adaptado ao mundo que o capitão tenta negar, personificando tudo o que a família fantástica aprendeu a desprezar. Com ele, o pai encara os efeitos da sua própria rebeldia e arrogância. Os caprichos do rebelde o prendem aquilo que ele rejeita, assim como a arrogância quebra uma árvore ao meio. Sua família corre o risco de se dividir, mostrando que tudo o que vem da família da mãe foi negado e agora pede uma reparação.

As cenas em que os dois brigam me fez pensar na falta de respeito que o próprio capitão poderia ter pelo seu pai e todo tipo de autoridade. Inclusive a sua mesma. Como é que ele, ou um pai, pode pretender emancipar seus filhos sem prepará-los e sem soltá-los para as outras facetas e fases da vida? O ator Viggo Mortensen, no papel de Capitão Fantástico, é tão bom que fica visível sua infantilidade amedrontada diante dos erros que fez, revelados pelo avô autoritário.

A bola de ouro na gaiola do João de Ferro 
O elo com o Homem Selvagem perdido.

Segundo Bly, o adolescente masculino em algum momento tem que ficar longe do pai e da mãe e para ir até os anciões para serem iniciados. Os iniciadores sábios, então, mostram aos meninos ou meninas que eles são mais do que ossos e sangue quando os levam para cavalgar ou contam algum causo. Ou os colocam carimbado papeis enquanto eles/as comandam uma empresa ou os fazem misturar tintas quando pintam a fachada de um prédio ou uma mesinha de canto. 

Meu avô materno me colocava em sua oficina lixando madeira, enquanto fazia um escorrega para nós. E minha avó paterna fingia que não nos via pular a janela para ir paquerar os meninos no meio da noite. Sua cumplicidade nos dava coragem para voltar correndo se algo de errado acontecesse. Ela não ia nos punir, nem nos dedurar por estarmos virando moças. 

 Estes encontros com os avós são mostrados em Capitão Fantástico no meio de uma grande perda e disputas ideológicas, a mesma que funda toda dinâmica bipolar. A mãe, no filme, sofria de bipolaridade, preço pago com o primeiro parto, mas que está permeando todo o filme quando a esfera da família da mãe rejeita os métodos do pai fantástico e vice-versa. 

A alienação parental dobrada, ou quando o pai rejeita tudo o que vem da mãe e a mãe rejeita tudo o que vem do pai cria esta gangorra onde a criança diante de um não pode ser o que vem do outro, alternando seu temperamento para se adequar. Nós também quando rejeitamos a diversidade das culturas e crenças de um povo, para impor a nossa religião e a nossa visão de mundo nele, criamos uma cisão intransponível que só a bipolaridade pode alcançar. Da mesma forma, ficamos em gangorras quando o feminino tenta educar o masculino para ser homem e o masculino tenta educar o feminino para ser mulher.

A solução, no filme Capitão Fantástico, surge em algumas cenas. Em uma delas, o pai e os filhos entram pelo corredor de uma Igreja, numa cerimônia de despedida da mãe morta, vestidos com cores alegres e ornamentos feitos de peles e flores pelas próprias crianças. Se para o avô, velando a sua filha, isto é uma afronta e representa o fracasso total daquele pai vestido de “clown”, para a jornada do masculino é a chegada ao mundo dos avós, pela porta da frente das crenças que os separaram até então.

Ainda assim, o antagonismo chega a tal ponto que o velho acerta uma flecha bem perto do capitão, revelando que ele mesmo, adaptado à sociedade industrial, encontrou um caminho para o masculino dele. Que ele tem a potência anciã necessária para fazer a passagem do menino ao homem. Ele está conectado aos ancestrais de alguma forma.

Robert Bly enfatiza mais ainda, que não são as gangues que garantem a passagem do menino para a vida adulta de um homem, mas o vínculo com os ancestrais. Se não são as gangues que nutrem o nascimento do homem adulto, embora sejam necessárias quando o iniciador não está presente, derrubar o pai para tomar uma empresa, por exemplo, é muito pior. Desafiar o pai, ou uma pessoa mais velha como se nós fôssemos muito melhor do que eles, então, é um corte em nossos nervos mais profundos. Como se a gente fosse fantástica/o. Mas é verdade, os mais velhos também perderam sua conexão com esta missão de iniciadores e enchem os netos e os mais jovens com preleções e medos desnecessários.

Por isso, quando os filhos começam a questionar o capitão fantástico de diversas maneiras, ele se confronta com a sua própria arrogância e fracassos. Por exemplo, como um pai pode emancipar as filhas sem o veículo feminino? Como foi escrito acima:  o menino sai da mãe, vai para o pai e dele para os anciões e o mundo. A menina sai da mãe, vai para o pai, retorna para a mãe e de lá segue para as anciãs e o mundo.

Sem a mãe, resta às filhas do Capitão falar esperanto em uma cena na qual não se sentem compreendidas pelo pai. Uma forma delas se manterem no universo feminino sem a intrusão do princípio masculino. Em outra cena, o filho mais novo questiona o pai e seus métodos, querendo matá-lo e escolhendo viver com o avô materno. Esta escolha o fixa na esfera da mãe, negando a sua própria e necessária jornada para a esfera do pai. A presunção deste menino, que se torna melhor do que o pai para a sua mãe, só se compara à presunção do seu próprio pai. E a mesma arrogância dos dois cede quando o seu ferimento na alma é visto como o mesmo ferimento no pai. Diante da doença da esposa (e mãe) eles não puderam salvá-la.

Esta impotência, segundo Hellinger, é o que nos torna adultos, enfim. E humildes. Nosso amor não pode salvar quem a gente ama de seus destinos e “defeitos”. Aquela visão fantástica de que salvamos nosso pai e mãe de suas dores, colocando sobre nossos ombrinhos de três anos de idade toda aquela dor, se desfaz quando deixamos a impotência fazer o seu serviço. Se não deixamos ela atuar vamos enfrentar um chefe ou um emprego que vai nos mostrar nossa impotência.

O capitão viúvo, então, diante da realização da sua impotência e dos seus fracassos, entrega os seus filhos para o avô, o sábio ancião. Mitologicamente, é como se ele dissesse aos meninos que aceita que eles entrem no mundo do homem adulto. Pega seu ônibus e segue a jornada sozinho. Raspa a sua barba, o cabelo original, o que mostra a sua chegada, enfim, ao mundo dos homens maduros. Quando o homem selvagem está integrado, os mais velhos são respeitados. Mais tarde, o filho mais velho faz a mesma reverência numa cena simples e sem palavras. Como os homens gostam de se comunicar.

As crianças, no entanto e apesar das suas dores e cicatrizes, não aceitam ficar sem o pai. Elas voltam para ele cumprindo sua missão de caminhar para o pai abrindo mão de toda a expectativa de como ele deveria ser. Este é o caminho para o segundo pai, ou segunda mãe, quando encontramos os verdadeiros reis e rainhas exatamente como eles são.

É quando aprendemos que não foram as feridas criadas pelos nossos pais que nos impediram de seguir em frente. Elas são os portais por onde acessamos os nossos gênios, talentos e força. E por onde somos iniciados. Foram as nossas expectativas de que podia ter sido diferente que bloqueia o caminho.

Finalmente, tem a cena mais bonita do filme. E a mais triste, alegre, sensível e dura. A saída do mundo da mãe é sempre um funeral em nossa alma e está dissolvida em nosso inconsciente coletivo, como as cinzas espalhadas nos ralos do mundo. Ao mesmo tempo, ela está ali e é reverenciada.

Não é qualquer mãe que liberta seus filhos de sua esfera. Nem mesmo se ela estiver morta. Mas esta mãe garante isso em seu testamento, homenageando o ciclo da vida, como nos rituais de ano novo.  Em Capitão fantástico[i], o filho mais velho é lançado ao mundo como homem desde a primeira cena. Depois chega ao avô, confronta o pai, caminha para o segundo pai, se liberta da mãe com o aval dela e parte para a sua vida - o desconhecido. 

Um caminho para os anciãos também foi criado para as filhas mais jovens, que precisarão da sua avó para fazer a sua jornada ao feminino.

Uma mensagem importante não escapou: não morra! 
Ou como o Hellinger diz: fique vivo!
“Eu fico vivo!”



Shree Crooks em seu personagem Zaja Cash - Capitão Fantástico
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[i] Meu agradecimento ao professor Matthias Bronk que me indicou este livro quando falávamos do Capitão Fantástico. 

[ii] Segundo Dany-Robert Dufour em “A arte de Reduzir as Cabeças”, as trocas deixam de ser simbólicas, carregadas de sentido, e passam a ser trocas de mercado. Tudo vira mercadoria e perde seu sentido.

[iii] No filme é citado algumas vezes o linguista  Noam Chomsky com suas posições políticas e o pediatra Benjamim Spock, mas eu conheço muito pouco da obra deles para poder entrar a fundo nesta discussão. Embora muito das ações do Capitão estejam alicerçadas nestes autores.

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