17 de nov. de 2013

35) Helena e a Morte Social dos Afetos



Cate Blanchett

       

        Há, na fronteira borrada do compreensível, o mundo dos sentimentos. Aventura-se neste universo os que têm sede de viver o inconcebível sem as pranchas das racionalizações, e, bem de longe com seus martelos, estão os que explicarão e legislarão sobre ele. Uma mulher ou um homem mergulhados em seus sentimentos, sem a ansiedade do controle, acaba por romper as represas emocionais dos outros, mesmo sem ter esta intenção. Quando esta vocação vem acompanhada de beleza e destemor da inconsciência, a pessoa se torna Helena.

        Ela é uma personagem mitológica, constelada em tantos humanos e situações com o mesmo dom de catalisar, sem saber, mudanças em corações estreitos. Por que entendo Helena desta maneira?

Desde a infância foi desejada por homens como Teseu e seu próprio padrasto. Adulta, teve que casar por consenso social e questões políticas com Menelau e, sem nenhum escrúpulo, largou o marido para desfrutar do amor do belo e jovem Páris. Tudo isso graças a  mãozinha da deusa Afrodite em disputa com as deusas Atená e Hera, desencadeando a guerra de Troia e depois  a odisseia de Ulisses (Odisseu).

Helena e Páris, 1788
de Jaccques-Louis David


Nem toda beldade causa tantos transtornos, por que então os homens disputavam-na com tanto fervor? O que realmente buscavam quando lutavam por Helena, além de vingar Menelau e saquear as riquezas da cidade sagrada de Troia? Será que algo nela os impulsionava a entrar em contato com uma parte essencial de si mesmos ainda latente e encoberta pela brutalidade? Quantas cabeças precisavam ser cortadas e peitos abertos para chegar ao coração dos sentimentos?

Hoje em dia as Helenas, mulheres lindas e catalisadoras dos tesouros inconscientes para o processo de individuação, continuam sendo objeto de desejos de alguns homens poderosos. O que chamo de homem poderoso? Aquele que tem e consegue controlar alguns símbolos de poder de acordo com o que é valorizado em seu meio social.

 Eles a buscam para lhe dar o posto de outra personagem mitológica, Hera, a esposa ideal para manutenção do “estado”. Mas ela não é. Os próprios homens poderosos podem ter o dom de Helena, mas ter estas características (beleza e poder) não garante este potencial catalizador de dimensões profundas. Na verdade, nem precisa ser lindo/a ou poderoso/a, basta estar em sintonia com o inconsciente sem perder o contato com a realidade, mantendo-se fiel a si mesmo/a.

Alguns dos homens poderosos querem fazer de Helena um troféu, uma mulher enfeite, inclusive com a permissão da moça. Algumas cedem algum tempo, porque lhes convêm, e porque tanto ele como ela não têm clareza do potencial de transformação deste encontro, mas sentem algum perigo imediatamente protegido com a coisificação deles e da relação.  Neste caso, Helena e seu dom são saqueados como foi Troia.

A morte social dos afetos, principalmente os mais doloridos, com os remédios tarja preta e a ditadura da euforia deixam as Helenas à beira da loucura. Não da loucura dionisíaca que questiona o status quo, mas da loucura vinda do abafamento dos sentimentos sem nomes, das caveiras num cemitério clandestino em busca de suas famílias ou do seu lugar na história. É que o mundo dos sentimentos, onde as Helenas reinam, é rico de cantos sem cantores, emoções esquecidas de pessoas excluídas que não encontraram legitimidade no mundo. Lá eles são vistos e entoados pelas Helenas que enlouquecem quando este universo é soterrado.

Comecei a pensar sobre esta personagem insondável e a asfixia dos afetos depois de assistir ao último filme de Woody Allen, Blue Jasmine. Nele, Cate Blanchett interpreta uma bela mulher que se separa do marido rico perdendo todas suas posses, menos alguns dos símbolos da riqueza como algumas joias, roupas e malas de marca que garantiam a faixada do seu status. Ela precisa recomeçar sua vida em outra esfera social. Em seu casamento ela se comportou, como disse uma amiga minha, como a deusa Hera: mulher prefeita para os homens poderosos e, terrivelmente vingativa quando seu lugar ao lado do parceiro é ameaçado.




Na história, os valores de classes são confrontados, o orgulho da personagem – como bem pontuou outro amigo meu - é irredutível, e sua disponibilidade em encontrar um novo marido é acirrada ao longo dos obstáculos enfrentados. Em uma das cenas, quando percebe que conseguirá, novamente, o posto de "esposa enfeite de luxo”, expressa suas emoções tomando seus remédios. Seus talentos e o luxo, deixo claro, não são enfeites, são competências e linguagem, mas atrelados aos valores de classe ganham outras dimensões.

Há também na película as mazelas de qualquer personalidade que não são explicadas simplesmente porque se é rico ou pobre, se os motivos são nobres ou fúteis ou se nisso está o valor do que é mau ou bom. E, em nenhum momento, vi o diretor, também autor, explicando o sofrimento da personagem como o resultado de alguém sem capacidade de recomeçar ou de ser frívolo. Sim, Jasmine sofre muito.


Cena de Blue Jasmine

O sofrimento não escolhe classe social, não é patrimônio só dos empobrecidos materialmente ou espiritualmente pelas aberrações políticas e sociais do capitalismo. E não há como desqualificar, chamando de fúteis os fatores que o precipitam em Jasmine, sem forçar uma mesma escala a todos os envolvidos. A complexidade humana exige um pouco mais da gente, como seguir juntos. É arriscado, não há a clareza do distanciamento, mas seguir junto não é estar misturado. Isto porque o próprio sofrimento, como um dos terrenos rochosos por onde todos inevitavelmente passarão numa vida, faz dos viventes parentes corroborando para esta postura contígua.

Cate Blanchett como Blue Jasmine

É neste sentindo que acompanhei o sofrimento da personagem Blue Jasmine: junto sem julgá-la. Nesta jornada me encontrei com o dom de Helena às avessas e sucateado no mundo prozac luxuoso. Não por Jasmine representá-la, mesmo sendo incrivelmente bela e fascinar alguns homens que não guerreariam por ninguém, mas pelo o que era mobilizado nela (e nos outros) até a sua loucura.

Os encontros geram mudança, é fato, mas com Blue Jasmine, triste Jasmine, o reencontro com sua nova velha condição de vida, ao perder tudo, desnudava sentimentos soterrados que não conseguiam dizer suas próprias palavras. A personagem virou muitas vezes o rosto para os conflitos da vida, por isso sua agonia recebia os mesmos diálogos - agora solitários - que estavam em sua memória, daquilo que perdeu, mas apontavam para dimensões emocionais mais profundas. Algo de verdadeiro e mais cheio de vida vinha à tona, nunca por linhas retas ou de forma agradável, ao mesmo tempo em que se transformava em velhas conversas que viravam o rosto mais uma vez.

Este confronto entre os sentimentos, a tentativa de escamoteá-los com a ajuda do orgulho e remédios e de dar vozes do passado para eles, também mobilizava algo nas pessoas, como aconteceu com o dentista, sua irmã, com o namorado da irmã, no próprio marido, no diplomata, e em seu enteado.

Não estou dizendo que uma dor e a incapacidade de lidar com as perdas não desencadeie a loucura, mas prefiro acompanhar a insanidade nela mesma. Será que  há sentimentos na loucura buscando seus rostos e nomes, buscando serem vistos e nomeados por quem nunca, nunca?

Nem seu orgulho imenso, nem seus genes maravilhosos, segundo sua irmã e mãe adotiva, puderam deter ou teriam tanta força para precipitar a miserável angústia do seu abandono e a sua falta de ar. Nem mesmo suas belas roupas ao final da película podiam confortá-la. Havia algo mais. Havia diálogos que ela repetia ao Deus dará como se pudessem dar palavras aos "sem vozes" dentro dela. 

Dores remotas a assombravam? De quem eram e desde quando? Talvez por ter sido abandonada pela mãe e pai e depois ser adotada.  Este precipício de amor que não pode ser tampado pela frase “quem cria é a mãe e não quem pari”, e que não pode ser explicado com os nomes de pais biológicos e de pais adotivos, mas está lá.  Talvez por ter desejado fugir vorazmente de si mesma, como se sua intensidade pudesse tragá-la e atrair aqueles de quem deveria fugir com algum Páris. Acho que ela não fugiria com nenhum Páris porque está longe de ser fiel a si mesma. Talvez pelo medo e anseio dos mimos que não aplacavam nada, mas estavam lá como amparos e contornos.  

 Sabe-se lá! 

Para além do filme, penso que se produz muita invisibilidade quando queremos explicações ao invés de acreditar em nossas vivências, ou quando estamos no pensamento abissal, aquele que separa quem tem direito e lugar na sociedade e quem pode ser morto e saqueado, inclusive com as bênçãos da lei, da religião e do saber científico (Boaventura da Souza Santos, 2007). Por isso há tantos sentimentos abafados, pessoas desconhecidas, vidas esquecidas e até invisíveis que não puderam ter suas faces e direitos legitimados, que precisam do dom de Helena para ser vistos. 


Quase ao final do filme (não vou contar nada, mas pule este parágrafo se você ainda não o assistiu), é revelada mais uma ação desesperada de Jasmine com a qual outros rostos velados e as consequências de virar a cara para eles são confrontados: os que foram saqueados  e os exploradores se encaram nesta atitude da personagem. Havia neste ato não só a vingança dela contra o marido, mas a vingança de muitos contra ele e ela. E a punição aos saqueadores não recaiu só sobre o magnata, mas na própria vida de Jasmine desde então. Nela todos existiam, vigaristas e vítimas e suas punições e recompensas.

Muitas vozes de muitas pessoas falam na loucura. O louco é aquele que as acolhe.

Por que eu escrevo estas coisas em um blog de Constelação Familiar? Por causa da fluidez dos muitos sentimentos e rostos vistos e vividos nas dinâmicas das constelações sem a necessidade de elucidação ou da lei que diz quem pode ou não existir. Como Helena nós apenas acompanhamos o movimento indecifrável do encontro dos nossos sentimentos com os do que não foram assistidos, sem precisar tratá-los como "nunca" nas grades de um hospício, de uma prisão, do esquecimento ou de milhares de explicações. 

6 de nov. de 2013

34) A Reconciliação




 Não falarei a seguir da justa justiça necessária às vítimas 
e aos agressores, mas de liberar o caminho em 
nosso coração para a reconciliação.




Nos movimentos de amor que curam, aquilo que se opõe encontra no outro sua completude, serenando. Pode ser o encontro de um homem com uma mulher em seu filho ou no relacionamento do casal; ou do Céu e da Terra em nosso corpo; do grande (avós e pais) e do pequeno (filhos) em nosso trabalho e sucesso; do passado e do futuro no presente de nossas escolhas; de dois homens ou duas mulheres em seu amor, e tantas outras esferas - verso e reverso de uma mesma imensidão. 

Quero dizer, as oposições são mais as dobras de uma mesma substância onde tudo é, do que instâncias separadas. Se são do mesmo estrato, de um único tecido, opõem-se em diferentes desdobramentos de si mesmo para se reconhecer na diferença. Por isso, a reconciliação não é um objetivo, mas um acontecimento seguindo em frente como se fosse latente, como se estivesse dentro de nós prestes a desabrochar nos encontros e a nos socorrer durante os desencontros, costurando amores, remendando as dores.

 Vivenciamos esta conexão entre tudo e todos quando acompanhamos o movimento de amor na Grande Alma numa constelação, sem agir, nos deixamos atuar por algo que acompanhamos, desembocando na reconciliação.

Nós, como oposição do totalmente outro, como avesso senciente de outro avesso senciente, também geramos energia quando nos atritamos, ou quando buscamos encontrar novos horizontes nas terceiras vias, caminhos ou soluções para duas necessidades aparentemente díspares.

Mas há oposições difíceis de reconciliação: quando a mãe abandona ou quando o pai é cruel, se a esposa é isso e o marido é aquilo, quando um país ataca e rouba outro, ou quando há um assassinato, um aborto e a morte traumática no parto. Ou, “simplesmente”, quando o que é proibido em uma família ou povo acaba por determinar a exclusão dos membros do clã. Por exemplo, ainda hoje, casar com alguém de outra classe social, outra religião, outra nacionalidade, ter afinidades sexuais e afetivas diferentes do que se espera tornam-se oposições muitas vezes difíceis de reconciliar num grupo. Estas proibições fecham a garganta do movimento do amor.

Idealmente, como diz o filósofo P.R.Sarkar, precisamos manter e alimentar nossa cultura para termos nossa identidade tanto na família como nos povos, mas é necessário abrir mão dos sócios-sentimentos (só a minha religião e crenças são certas) e  geo-sentimentos (o meu país é melhor e tem mais direitos que o teu) que impossibilitam a convivência dentro do próprio grupo e com outros, causando injustiças.

Como se vê, não só os abusos, as mortes prematuras e assassinatos dificultam o movimento de reconciliação na alma, mas também a consciência de grupo. A  menos que se expanda para a consciência do espírito que se abre para tudo e todos sem distinção. E é isso o que fazemos durante a Constelação: nos centramos, nos afastamos para ver melhor e colocamos todos no coração sem distinção ou julgamentos, principalmente os excluídos. Tanto a aceitação do que aconteceu, como a reconciliação com o oponente ou situação de exclusão fica livre dos entraves e assim podem atuar (Hellinger, 2012). 

Neste sentido, a reconciliação, quando a alma encontra a sua cura, é um caminho sereno e fértil no meio de dois polos aparentemente separados. 


Foto de Osvaldo Luiz da página Lá no pé da serra 








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