Cate Blanchett
Há, na fronteira borrada do compreensível, o mundo dos sentimentos. Aventura-se neste universo os que têm sede de viver o inconcebível sem as pranchas das
racionalizações, e, bem de longe com seus martelos, estão os que explicarão e
legislarão sobre ele. Uma mulher ou um homem mergulhados em seus sentimentos,
sem a ansiedade do controle, acaba por romper as represas emocionais dos
outros, mesmo sem ter esta intenção. Quando esta vocação vem acompanhada de
beleza e destemor da inconsciência, a pessoa se torna Helena.
Ela é uma personagem mitológica, constelada em tantos humanos e situações com o
mesmo dom de catalisar, sem saber, mudanças em corações estreitos. Por que
entendo Helena desta maneira?
Desde
a infância foi desejada por homens como Teseu e seu próprio padrasto. Adulta, teve
que casar por consenso social e questões políticas com Menelau e, sem nenhum
escrúpulo, largou o marido para desfrutar do amor do belo e jovem Páris. Tudo
isso graças a mãozinha da deusa Afrodite
em disputa com as deusas Atená e Hera, desencadeando a guerra de Troia e depois
a odisseia de Ulisses (Odisseu).
Helena e Páris, 1788
de Jaccques-Louis David
Nem
toda beldade causa tantos transtornos, por que então os homens disputavam-na
com tanto fervor? O que realmente buscavam quando lutavam por Helena, além de
vingar Menelau e saquear as riquezas da cidade sagrada de Troia? Será que algo
nela os impulsionava a entrar em contato com uma parte essencial de si mesmos ainda latente e encoberta pela brutalidade? Quantas cabeças precisavam ser
cortadas e peitos abertos para chegar ao coração dos sentimentos?
Hoje
em dia as Helenas, mulheres lindas e catalisadoras dos tesouros inconscientes para o processo de individuação,
continuam sendo objeto de desejos de alguns homens poderosos. O que chamo de
homem poderoso? Aquele que tem e consegue controlar alguns símbolos de poder de
acordo com o que é valorizado em seu meio social.
Eles a buscam para lhe dar o posto de outra personagem mitológica, Hera, a esposa ideal para manutenção do
“estado”. Mas ela não é. Os próprios homens poderosos podem ter o dom de
Helena, mas ter estas características (beleza e poder) não garante este
potencial catalizador de dimensões profundas. Na verdade, nem precisa ser
lindo/a ou poderoso/a, basta estar em sintonia com o inconsciente sem perder o
contato com a realidade, mantendo-se fiel a si mesmo/a.
Alguns
dos homens poderosos querem fazer de Helena um troféu, uma mulher enfeite,
inclusive com a permissão da moça. Algumas cedem algum tempo, porque lhes
convêm, e porque tanto ele como ela não têm clareza do potencial de
transformação deste encontro, mas sentem algum perigo imediatamente protegido
com a coisificação deles e da relação. Neste caso, Helena e seu dom são
saqueados como foi Troia.
A
morte social dos afetos, principalmente os mais doloridos, com os remédios
tarja preta e a ditadura da euforia deixam as Helenas à beira da
loucura. Não da loucura dionisíaca que questiona o status quo, mas da loucura vinda do abafamento dos sentimentos sem nomes, das caveiras num cemitério clandestino em busca de suas
famílias ou do seu lugar na história. É que o mundo dos sentimentos, onde as Helenas reinam, é rico de
cantos sem cantores, emoções esquecidas de pessoas excluídas que não encontraram legitimidade no mundo. Lá eles são vistos e entoados pelas Helenas que enlouquecem quando este universo é soterrado.
Comecei a pensar sobre esta personagem insondável e a asfixia dos afetos depois de assistir ao último filme de Woody Allen, Blue Jasmine. Nele, Cate Blanchett interpreta uma bela
mulher que se separa do marido rico perdendo todas suas posses, menos alguns dos
símbolos da riqueza como algumas joias, roupas e malas de marca que garantiam a faixada do seu status. Ela precisa recomeçar sua vida em
outra esfera social. Em seu casamento ela se comportou, como disse uma amiga minha, como a deusa
Hera: mulher prefeita para os homens poderosos e, terrivelmente vingativa
quando seu lugar ao lado do parceiro é ameaçado.
Na
história, os valores de classes são confrontados, o orgulho da personagem –
como bem pontuou outro amigo meu - é irredutível, e sua disponibilidade em encontrar um novo marido é acirrada ao longo dos obstáculos enfrentados. Em uma das cenas, quando percebe que conseguirá, novamente, o posto de "esposa enfeite de luxo”, expressa suas emoções tomando seus remédios. Seus talentos e o luxo, deixo claro, não são enfeites, são competências e linguagem, mas atrelados aos valores de classe ganham outras dimensões.
Há
também na película as mazelas de qualquer personalidade que não são explicadas
simplesmente porque se é rico ou pobre, se os motivos são nobres ou fúteis ou
se nisso está o valor do que é mau ou bom. E, em nenhum momento, vi o
diretor, também autor, explicando o sofrimento da personagem como o resultado
de alguém sem capacidade de recomeçar ou de ser frívolo. Sim, Jasmine sofre muito.
Cena de Blue Jasmine
O
sofrimento não escolhe classe social, não é patrimônio só dos empobrecidos
materialmente ou espiritualmente pelas aberrações políticas e sociais do
capitalismo. E não há como desqualificar, chamando de fúteis os fatores que o
precipitam em Jasmine, sem forçar uma mesma escala a todos os envolvidos. A
complexidade humana exige um pouco mais da gente, como seguir juntos. É arriscado, não há a clareza do distanciamento, mas seguir junto não é estar misturado. Isto porque o próprio sofrimento, como
um dos terrenos rochosos por onde todos inevitavelmente passarão numa
vida, faz dos viventes parentes corroborando para esta postura contígua.
Cate Blanchett como Blue Jasmine
É
neste sentindo que acompanhei o sofrimento da
personagem Blue Jasmine: junto sem julgá-la. Nesta jornada me encontrei com o dom de Helena às avessas e sucateado no mundo prozac
luxuoso. Não por Jasmine representá-la, mesmo sendo incrivelmente bela e fascinar
alguns homens que não guerreariam por ninguém, mas pelo o que era mobilizado
nela (e nos outros) até a sua loucura.
Os encontros geram mudança, é fato, mas com Blue Jasmine,
triste Jasmine, o reencontro com sua nova velha condição de vida, ao perder
tudo, desnudava sentimentos soterrados que não conseguiam dizer suas próprias
palavras. A personagem virou muitas vezes o rosto para os conflitos da vida,
por isso sua agonia recebia os mesmos diálogos - agora solitários - que estavam em
sua memória, daquilo que perdeu, mas apontavam para dimensões emocionais mais profundas. Algo
de verdadeiro e mais cheio de vida vinha à tona, nunca por linhas retas ou de
forma agradável, ao mesmo tempo em que se transformava em velhas conversas que viravam o rosto mais uma vez.
Este confronto entre os sentimentos, a tentativa de
escamoteá-los com a ajuda do orgulho e remédios e de dar vozes do passado para eles,
também mobilizava algo nas pessoas, como aconteceu com o dentista, sua irmã,
com o namorado da irmã, no próprio marido, no diplomata, e em seu enteado.
Não
estou dizendo que uma dor e a incapacidade de lidar com as perdas não
desencadeie a loucura, mas prefiro acompanhar a insanidade nela mesma. Será
que há sentimentos na loucura buscando
seus rostos e nomes, buscando serem vistos e nomeados por quem nunca, nunca?
Nem
seu orgulho imenso, nem seus genes maravilhosos, segundo sua irmã e mãe
adotiva, puderam deter ou teriam tanta força para precipitar a miserável
angústia do seu abandono e a sua falta de ar. Nem mesmo suas belas roupas ao final
da película podiam confortá-la. Havia algo mais. Havia diálogos que ela repetia ao Deus dará como
se pudessem dar palavras aos "sem vozes" dentro dela.
Dores
remotas a assombravam? De quem eram e desde quando? Talvez por ter sido
abandonada pela mãe e pai e depois ser adotada. Este precipício de amor
que não pode ser tampado pela frase “quem cria é a mãe e não quem pari”, e que
não pode ser explicado com os nomes de pais biológicos e de pais adotivos, mas
está lá. Talvez por
ter desejado fugir vorazmente de si mesma, como se
sua intensidade pudesse tragá-la e atrair aqueles de quem deveria fugir com algum Páris. Acho
que ela não fugiria com nenhum Páris porque está longe de ser fiel a si mesma. Talvez pelo medo e anseio dos mimos que não
aplacavam nada, mas estavam lá como amparos e
contornos.
Sabe-se
lá!
Para
além do filme, penso que se produz
muita invisibilidade quando queremos explicações ao invés de
acreditar em nossas vivências, ou quando estamos no pensamento abissal, aquele
que separa quem tem direito e lugar na sociedade e quem pode ser morto e
saqueado, inclusive com as bênçãos da lei, da religião e do saber científico
(Boaventura da Souza Santos, 2007). Por isso há tantos sentimentos
abafados, pessoas desconhecidas, vidas esquecidas e até invisíveis que não puderam ter suas
faces e direitos legitimados, que precisam do dom de Helena para ser
vistos.
Quase ao final do filme (não vou contar nada, mas pule este
parágrafo se você ainda não o assistiu), é revelada mais uma ação
desesperada de Jasmine com a qual outros rostos velados e as consequências de
virar a cara para eles são confrontados: os que foram saqueados e os exploradores se encaram nesta atitude da
personagem. Havia neste ato não só a vingança dela contra o marido, mas a
vingança de muitos contra ele e ela. E a punição aos saqueadores não recaiu só
sobre o magnata, mas na própria vida de Jasmine desde então. Nela todos
existiam, vigaristas e vítimas e suas punições e recompensas.
Muitas vozes de muitas pessoas falam na loucura. O louco é aquele que as acolhe.
Muitas vozes de muitas pessoas falam na loucura. O louco é aquele que as acolhe.
Por
que eu escrevo estas coisas em um blog de Constelação Familiar? Por causa da
fluidez dos muitos sentimentos e rostos vistos e vividos nas dinâmicas das
constelações sem a necessidade de elucidação ou da lei que diz quem pode ou não
existir. Como Helena nós apenas acompanhamos o movimento indecifrável do
encontro dos nossos sentimentos com os do que não foram assistidos, sem
precisar tratá-los como "nunca" nas grades de um hospício, de uma prisão, do
esquecimento ou de milhares de explicações.