Qualquer um de nós já foi ferido ou
feriu alguém. É muito doloroso ser machucado e machucar outra pessoa sem encontrar uma saída. Dependendo
da agressão feita (ou sofrida), podemos atrapalhar muito a vida de uma pessoa por
gerações. Como lidar com a dor e a culpa? Como pedir ajuda ao perdão e à
reconciliação?
No século XX, na Índia teve um grande mestre de yoga,
Shrii Shrii Anandamurti que recebeu um discípulo pedindo ajuda para salvar o seu
filho de uma doença incurável. Este pai, rico, já havia levado o rapaz a vários hospitais de ponta no mundo inteiro. Bába, como era chamado Anandamurti,
disse que o único médico que podia ajuda-lo morava em uma cidade pequenina nas redondezas. Este clínico era um ancião, pobre, que ajudava muita gente. Ao ver o jovem, se
compadeceu tanto pelo seu sofrimento e se afeiçoou tanto pelo rapaz, que fez de tudo para curá-lo.
Depois de algum tempo, o pai muito agradecido voltou para o mestre e perguntou o
que realmente havia acontecido? Por que os outros médicos tinham falhado e ele
não? Bába respondeu no estilo daquela sabedoria milenar:
- Na última vida, seu filho foi patrão
do pai deste velho médico. Em dado momento despediu o homem sem nenhuma razão ou compensação pelo trabalho dele. A família passou tanta fome que morreram muitos
filhos e o próprio pai do médico, deixando ele ainda criança sob os cuidados de uma mãe despedaçada de dor. Sua revolta foi tão grande que até aquele momento alimentava muito ódio por aquele patrão. Quando o senhor chegou lá com o seu filho, que foi em outra vida o responsável por tanta desgraça na família dele, os dois puderam ter outra chance. O sofrimento do seu menino despertou a compaixão e o amor do médico. A vontade de o rapaz
melhorar fez com que o ódio do seu coração já tivesse sido o suficiente. E a
culpa inconsciente do teu filho desde a outra vida pode olhar nos olhos de quem causou
tanta dor. Por isso agora ele se curou, ele está bem.
Observamos
nas constelações que se responsabilizar por uma ação que causou um dano a
alguém não é se culpar ou até atrair uma doença, mas ser capaz de responder e confrontar o conflito para
resolvê-lo. Por exemplo, se olhamos para uma pessoa a quem causamos uma dor e
pedirmos perdão, como se ela pudesse tirar de nós o peso das nossas ações,
nossa culpa e a dívida com a vítima não vão diminuir.
Ao
invés disso, se dissermos de coração (e sem intenções egoístas de sermos
perdoados) "eu te causei aquela dor, sinto muito, prometo não
fazer de novo e te cuido mais no futuro", assumimos nosso ato,
entendemos que causamos uma dor, estamos sentidos com o ocorrido e ainda
lançamos a perspectiva de uma ação que compense o dano causado.
O
que geralmente acontece, no entanto, é que muitas vezes a sensação de culpa não
consegue mais olhar a vítima e quer se livrar deste sentimento projetando a
culpa nos outros ou se punindo inconscientemente, com aquela doença do exemplo acima.
E
por que o perdão da vítima não resolve a culpa e nem diminui a dívida do agressor? Porque pretende tirar dele a possibilidade de se responsabilizar
pela solução, que é a nova conduta que compensa o ato e nos leva além. O perdão sem a
compensação não reconcilia. Tampouco alivia a vítima do fardo, porque impede o
agressor de fazer o que lhe cabe. Como disse Hellinger:
“o
ato de perdoar não funciona como substituto para um confronto necessário. Com
isso apenas se encobre e adia o conflito, em vez de resolvê-lo. Os efeitos do
perdão são especialmente nocivos quando a vítima absolve o agressor de sua
culpa, como se tivesse o direito de fazê-lo. Para que aconteça uma verdadeira
reconciliação, a vítima tem não somente o direito, mas também o dever de exigir
reparação e compensação e o culpado tem não apenas o dever de assumir as
consequências de seus atos, mas também o direito de fazê-lo.” (Hellinger, 2011:22).
A vítima,
em sua justa exigência, não deve virar um algoz pior do que seu agressor, se
tornando um perseguidor implacável de quem lhe fez mal. Até o ódio justtificável daquele médico cedeu diante do sofrimento humano.
É o que acontece com algumas
pessoas traídas, por exemplo, que passam anos da relação punindo seus
parceiros/as pela dor que sofreram, mesmo que elas tenham tido a compensação com um “sinto muito” sincero e a promessa e ações concretas do parceiro/a de
cuidar da relação com mais zelo e amor.
Mas sabemos também que na maioria das vezes quem fere ou não
assume seus atos ou assume mas não se compromete a compensar o que fez, ou acha que
pedir desculpas sinceras é o suficiente. Não é.
Bert
Hellinger conta a história de um casal que buscou ajuda de um terapeuta. A moça
havia abandonado o marido e queria voltar para a relação. Mas ela pediu isso
sem nenhum compromisso. Sem oferecer nenhuma reparação.
Ao saber
pelo terapeuta que precisava fazer algo de verdade, refletiu, olhou para o
parceiro e disse: “Sinto muito o mal que lhe fiz. Por favor, deixe-me ser de
novo sua mulher. Eu o amarei, cuidarei de você e, no futuro, você poderá
realmente confiar em mim.” (Hellinger, 2011: 22).
O
parceiro se manteve inabalável até o terapeuta confirmar que ele tinha sofrido
muito. Só nesta hora ele chorou pela primeira vez. Então o conselheiro lhe
disse: “Uma pessoa contra a qual foi cometido tanto mal sente-se no direito de
rejeitá-la, como se não precisasse dela. Contudo, contra tal inocência o
culpado não tem chances. ” (Hellinger, 2011: 23)
Ao escutar isso, o homem sorriu para a
sua esposa. Ele tinha sido pego em sua inocência imaculada, que não dava
chances para mais nada. Se eles voltaram, não ficamos sabendo, mas tiveram uma
chance de reconciliar como o médico e o doente.
Assim, aprendemos que “existe
um modo bom de perdoar que preserva a dignidade do culpado e a do agressor. Ele
requer que a vítima não faça exigências exageradas e aceite a compensação e a
reparação que lhe forem oferecidas pelo ofensor. Sem tal perdão, não existe
reconciliação.” (Hellinger, 2011: 22).
Tem também
aqueles que manipulam tudo isso que estamos falando. Eles não foram feridos, mas
interpretam ou distorcem os atos de outras pessoas como se tivessem sido feridos
e ficam perseguindo ou se fazendo de vítima inventando um inimigo. Ou ferem e chamam
a vítima de louca, ou se justificam dizendo que tinham o direito de fazer o que
bem quisessem. Com relação a estes comportamentos, não há muito o que fazer
além de nos mantermos atentos e fortes.
A culpa, o
perdão, a reconciliação, as verdadeiras vítimas e os algozes arrependidos aparecem na literatura ocidental desde a peça
Oréstia de Ésquilo, escrita há mais de 2.500 anos. Tanto lá como agora, nem o “olho
por olho”, nem o ato de perdoar sem um ato de reparação do algoz, equilibraram a balança. A justa e consciente compensação sim. E as portas das graças divinas, que colocaram o algoz doente sob a espada do médico, também!
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Hellinger, Bert. O Amor
do Espírito. Goiânia: Atman, 2011