Do livro: Mamãe Você me ama?
autora Barbara M. Joose e ilustradora Barbara Lavallee
O tema sobre o
qual faço esta reflexão é difícil e polêmico. Coisas de se abrir ao coração
para não deixa-lo quebrar...
Quando eu entrava,
e entro, em contato, numa constelação familiar, com as reações dos abortos
provocados, uma frase emperrava em minha garganta. Não consegui traduzi-la até poucas
semanas atrás: “Mamãe, você me aceita (como eu sou)?”
Como na
constelação fica evidente que tudo o que foi criado não perde sua existência,
aquilo que chamamos de óvulo fecundado
(na barriga ou congelado), feto, embrião de 1 semana etc., existe como entidade
total para alma familiar e não precisa da legitimidade social para ter este
direito, mas para ter seu lugar. Esta frase, então, “mamãe, você me aceita (como
eu sou)?” estava na garganta da mãe que aborta, da criança abortada, dos irmãos
dela e do pai da criança abortada. Todos perguntam a sua própria mãe se ela
concorda com sua existência.
A pergunta neles
parece que fica assim:
A mãe que
aborta à sua mãe: “Mamãe, você me aceita?... Como filha, mulher, esposa, filha
do meu pai, mãe dos meus filhos? Dona dos meus atos, Etc...?”
Pai da criança
abortada à sua mãe: “Mamãe, você me aceita? ... Como filho, homem, pai, filho
do meu pai? Etc...?”
Irmãos da(s)
criança(s) abortada(s): “Mamãe, você me aceita?. .. Como filho, mesmo tendo tirado
outro? O meu amor que tenho por você, independente do que faz? Como irmão do
meu irmão morto? Como teu filho que tem o irmão morto no coração? Etc...”
Criança
abortada: “Mamãe, você me aceita?... Mesmo que tenha me tirado, com todo seu
sentimento de culpa, eu mereço seu olhar, seu amor, minha inclusão? Etc...”
Esta percepção
me levou àquele bolo na garganta, muitas vezes o globo histérico - somatização
da chamada neurose histérica. Será que nele estão tingidas as cores emocionais e
as implicações desta pergunta à mãe? O que este bolo indigesto tem a ver com o movimento
interrompido em direção à mãe? Qual a solução? (Um grande soluço).
Fui fazer um pequeníssimo
(e ruim) resumo da trajetória da histeria, seus sintomas e hipóteses de sua
etiologia por meio de um livro ótimo* - coloco ao final deste texto para quem
quiser ler. Minha intenção era entender um pouco desta tão famosa “doença” da
alma com suas perturbações emocionais e paixões reprimidas e relacioná-la com
minhas percepções atávicas (isso existe?) dos efeitos do aborto provocado em um
sistema familiar.
Nesta sinopse,
eu destaquei a hýstera (útero,
matriz), onde todos são gerados; o desejo sexual e de procriação sufocados que
se transformam em sintomas físicos “pedindo ajuda” (histeria); a investigação dos
sintomas de angústia expandida aos homens, tanto como nas mulheres, causada
pela repressão de seus desejos e paixões - anseios da alma; a relação
corpo-mente recolocada em questão por meio desta “doença”, levando ao conceito
de inconsciente pessoal (Freud), extrapolado ao inconsciente coletivo (Jung).
Tudo isso desafiando qualquer negação da pluridimensionalidade humana. Ou seja,
se a existência é multidimensional, não há só uma forma de abordá-la e uma só
linguagem para entendê-la ou se fazer entender.
Quero dizer, todos
os anseios reprimidos – sem voz - pediriam legitimidade em sintomas na
garganta? No sistema reprodutor? Na tireoide? Nos pulmões? No corpo, como na
histeria? Buscariam campos de representação nas relações sexuais, nos encontros
de amor? Nas relações pais e filhos? Nosso corpo e relações seriam o campo
privilegiado para partes excluídas nossas (e de nossa família) se manifestarem
por meio “doenças e curas”? É que a vida
e o corpo multidimensional, suas dores e amores, são muito criativos ao se
fazer notar quando não sabemos escutá-los.
E esta voz
abafada, representações, sintomas, pertencem a quem? Quem é a “dona” do útero
ferido? Do desejo reprimido? Da angústia? Dos anseios da alma? Sou eu que tenho
o sintoma, ou também pertence a algum ancestral ou à alma familiar?
O que se tem
visto nos movimentos de alma durante a Constelação é que quando há um aborto
provocado, mesmo que ele seja um segredo, o irmão nascido, o pai, a mãe e a
criança abortada se sentem em conexão intensa, como se existisse de fato uma
criança ali, porque existe. Não estou reafirmando a visão espírita, estou
apenas sublinhando o que Hellinger já disse: o que foi criado não desaparece
jamais.
“Por que ele/a não pôde vir? Por que foi
abortado?” não é, então, o essencial. O que a garganta fechada de todos os
envolvidos quer dizer, sem dizer, é “você me aceita? Eu posso existir?”
Este bolo gutural
ganha dimensão pujante nas irmãs vivas, que, muitas vezes praticam o aborto,
seguindo a sina familiar. Por conta disso, pode haver um bloqueio na relação
com a mãe, e isso a impede de ir até ela criando um movimento interrompido em
direção à mãe.
No caso, o/a
filho/a não consegue ir para a mãe por não se sentir aceito, mesmo que seja. “Se
meu irmão não foi aceito, por que eu seria?” Aqui ele/a pode estar julgando a
mãe, ou se identificado com o irmão morto, ou os dois. Esta dificuldade impossibilita
que se tome a matriz. Esta situação gera no filho excluído pelo aborto mais um
sofrimento: não bastou não vir, seu destino torna outros menos felizes. Por
outro lado, a mãe também pode ser dura consigo mesma, e como forma de compensar
sua responsabilidade e implicações do seu ato dificulta o caminho do seu filho até
ela.
Bem, não só o
aborto pode endurecer um coração.
Voltando ao
assunto, não sei se serei compreendida, mas em última análise e sem julgamentos,
nenhum motivo justifica um aborto provocado. Mas os motivos existem, desde emaranhamentos
familiares complicadíssimos até ilusões sobre o que se quer da vida. Então,
será mesmo que o que levou a mulher a esta ação não a ajudaria a encarar seu
filho morto nos olhos, coloca-lo no coração e retomar sua vida para algo bom,
sem desejar a antiga inocência, mas com a carga do que fez ou teve que fazer?
Aquilo que te (me) fez abortar, busque!
Ao menos assim, pode-se olhar para o/a filho/a
morto neste ato dolorosíssimo e cheio de implicações, e saber que ele (o ato) não
foi em vão para a mãe, nem para o filho. Dizer que é só um embrião, não ajuda
em nada. Discutir quando a vida começa, também não dá conta das implicações do
aborto na alma, além de desconsiderar o mundo dos mortos – local onde a
existência mantém tudo o que já foi criado, mesmo um “embrião”. E também
desconsidera a mulher, o útero e o feminino e o que esta dimensão de cálice pode
revelar além do racionalismo científico e dos dogmas religiosos. Como sou uma mulher
e tenho útero, sei que teço meus filhos, obras, visões, deste mundo invisível e
insondável. Há práticas xamânicas que se sustentam neste órgão e suas visões,
por isso, a repressão de sua sabedoria e não só de seus desejos, pode sim virar
histeria. Histeria coletiva! Não foi por isso que se queimaram as bruxas? Elas
sabiam demais!
Que tudo isso
não seja incentivo para se abortar, nem um peso maior do que já é para quando “não
há escolha”. Que seja um estímulo para buscar o saber também pelo irracional e
não só pela razão, para criar um mundo capaz de acolher o mistério, assim como
aplaude a luz.
Tanto para mãe,
quanto para os envolvidos na família onde há aborto provocado, resta, quando
chegar a hora – geralmente quando já não se aguenta mais tanta angústia, falta
de ar (histeria?) – NÃO interromper ainda mais o movimento em direção à matriz.
E ainda se tem que se ultrapassar o medo e a raiva gerados por todos os
bloqueios no caminho.
Sabe aquela
raiva que se tem do/a parceiro/a sem nem saber o por quê? Pode ser a raiva de não
ter conseguido chegar à mãe projetada nele/a. Ressalto isso porque, segundo
Hellinger, “o movimento interrompido em direção a nossa mãe, bem como suas
consequências, reflete-se igualmente em nossas relações de casal”, em nosso
caminho profissional e em tantas outras empreitadas. No caso dos
relacionamentos amorosos, por exemplo, “em vez de nos aproximar de nosso
parceiro ou parceira, nos retiramos e esperamos que o outro venha ao nosso
encontro (...)” Ele nos instrui, então, a prestar “atenção para identificar até
que ponto o movimento interrompido em direção a nossa mãe se mostra de forma
parecida, ou inclusive idêntica, a nossa relação de casal” (Hellinger, 2012: 12).
Mesmo que a
mãe não possa amar como se gostaria por conta da culpa, ou problemas ancestrais
que a levaram a ser difícil, o/a filho/a deve agora ousar esta aproximação, ao
menos interiormente. Mesmo que a mãe já esteja morta, ou se tenha que se manter
a uma distância saudável dela, tomar a mãe no coração transformaria o bolo na
garganta chamado “mamãe, vc me aceita
como eu sou?” em sua solução, “SIM, EU CONCORDO COM VOCÊ EXATAMENTE COMO É,
MAMÃE! E agora eu a tomo e vou até você, interiormente, ultrapassando toda
raiva e medo por tanta rejeição!”
Isso
transbordaria para as relações e o mundo. Já não se quereria mais ser o que não
se é para agradar ao pai, mãe, professores, parceiro/a e outros. Já não se reprimiria
mais os anseios da alma, seus desejos e as suas paixões para o mundo nos aceitar.
Há algo em aceitar a mãe (e o pai) tal como é, que faz crescer para além dos
limites outrora repressores.
Portanto, como diz Hellinger, as 3 palavras essênciais são: GRATIDÃO (pela vida recebida), SIM (eu concordo com você exatamente
como é) e POR FAVOR (palavra mágica que se abre ao coração).
Do livro: Mamãe Você me ama?
autora Barbara M. Joose e ilustradora Barbara Lavallee
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Bibliografia:
Hellinger,
Bert. Meditações de Bert Hellinger. São Paulo, 2008.
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A Fonte não precisa perguntar pelo caminho. Palato de Minas: Atman, 2007.
*Ramos,
Gustavo Adolfo. Histeria e psicanálise depois de Freud. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2008.
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Histeria,
um pequeno resumo.
Na Grécia
antiga, a histeria que vem de hýstera
e se traduz como matriz ou útero, pode ser entendida, segundo Hipócrates, como
sintomas da repressão de um ser vivo dentro do corpo da mulher – o útero – que
tem desejos próprios de sexo e procriação. A falta de relações sexuais e de gerar
filhos pode levar ao sufocamento e à sensação de angústia, uma vez que o útero
se desloca se seus desejos são violentamente frustrados, pressionando outros
órgãos que afetam a respiração. Na Idade Média, a histérica se transformou “em
um ser possuído, objeto, então, de competência jurídica e religiosa.
Basicamente, tratava-se do comportamento das bruxas e da bruxaria e de seu
julgamento” (Ramos, 2008:23). Na Renascença, que rompeu com a Idade Média
buscando inspiração na Grécia antiga, a retomada da histeria é pelo viés da sua
renaturalização, como sintomas de repressões que o vaso feminino possa sofrer,
ou da cura médica (Ramos, 2008: 22-25).
No século XIX,
o médico francês Pierre Briquet publica um livro intitulado “Tratado clínico
terapêutico da histeria” e tem como pressuposto a histeria como sintomas da
perturbação emocional da disfunção do cérebro. Relaciona estes sintomas também
aos homens (Ramos, 2008: 24).
O útero foi
para as cucuias e o cérebro começou a
receber todos os créditos e descréditos da existência emocional humana. Mas, os
homens ganham algum status emocional, e isto é sempre bom!
O neurologista
Jean-Martin Charcot, seguidor de Briquet se atém ao aparecimento desta doença
por conta das vivências de fortes emoções e da predisposição. Por meio da
hipnose produziu um tipo de “histeria de laboratório” e, por conta dela surgiam
doenças físicas como dores musculares, paralisias, as contrações, as anestesias,
transtornos alimentares, redução do campo visual etc.. Com isso ele reafirma a
ideia de Pinel sobre doenças mentais que estariam ligadas à “alma”, à dimensão
psicológica ou das paixões. Em suas pesquisas enfatiza, também, a histeria
masculina. Parecido com a neurastenia (astenia – fraqueza, neuro - cérebro) estudada
pelo neurologista George Beard, com seus sintomas de angústia, depressão,
fraqueza muscular (Ramos, 2008: 27-28).
Tanto Charcot
como Briquet não viam relação da histeria com o desejo erótico. Já para outros
estudiosos da época, os sintomas histéricos tinham relação com violação sexual,
a exposição às cenas impressionantes desta temática e à insatisfação sexual
como os antigos gregos pressupunham (Ramos, 2008: 29).
Diz-se que,
graças à histeria e aos estudos sobre a obra de Charcot, Freud inaugura a
psicanálise. Ele chama de conversão somática a transformação de elementos
psicológicos em sintomas físicos por processo misteriosos. Este mistério retoma
a questão corpo-mente (Ramos, 2008: 31) e um novo objeto de estudos ganha
destaque – o inconsciente pessoal.
Com Jung, o
inconsciente pessoal se abre ao coletivo, às caudas ancestrais e à riqueza
cultural. Com o inconsciente coletivo aparecendo em sonhos, nos mitos, nos
eventos sincrônicos, é revelado o campo onde se aloja os tesouros e dragões da
nossa história milenar.