Ser Por Inteiro
Episódio no Podcast @Benzadeusa
Se você já se sentiu desencantado/a com a vida
ou dilacerado/a
pelas dúvidas, o episódio “Ser por Inteiro”,
no @Benzadeusa, pode ajudar você.
O Episódio “Ser por Inteiro está no ar, dia 6/6/2023, no @Benzadeusa
(Podcast e Youtube) da maravilhosa Maria Marta Stopa.
Nele, correlacionamos uma série e um filme, nos quais os arcos
dramáticos das personagens principais desembocam no “ser por inteiro”, com o
conto de fada romeno “O Gato”, interpretado pela analista junguiana
Marie-Louise Von Franz (1915 – 1998).
Sex/life é uma série, com um
nome que divide vida e desejo ao meio, sobre a trajetória de Billie, uma mulher
dilacerada pela repressão dos seus desejos.
O pano de fundo da sua jornada é o mesmo que atravessa muitos
corpos femininos, fazendo-a escolher o que a desconecta dos seus instintos e de
todo conteúdo da sua sombra - muitas vezes preciosos, muitas vezes assustadores
-, como se eles fossem a raiz de todos os erros.
Não à toa, o último episódio da 1ª temporada se chama: “A
escolha certa”
Será que uma pessoa corroída pelas incertezas está realmente em
dúvida ou dividida ao meio?
Será que uma mulher deve escolher entre uma ou outra parte de si
mesma para sanar as suas dúvidas, ou permanecer inteira quando faz suas escolhas?
Já na comédia alemã com nome de contos de fada, “Faraway” ou “Em Uma Ilha Bemdistante”, a jornada de autodescoberta de Zeinep se dá pela reconexão com
a mãe, depois de herdar uma ilha remota na Croácia e um diário, escrito em
croata, que ela não entende.
Talvez, a ilha e a língua desconhecidas da falecida mãe
sejam a representação de como ela estava distante do próprio feminino em uma
vida cheia de obrigações que não lhe dava mais sentido.
Nesta ilha, ela conhece Josip, um homem croata, instigante, rude
e magoado com as mulheres.
À medida que vão se conhecendo, ela se reconecta com a (sua)
natureza, enquanto ele cura as próprias feridas, banhados pelo princípio
feminino, esquecido em algum canto das suas dores.
Assim, tanto a série como o filme ressoam com o que a Marie-Louise
trata em seu livro “O Gato: um conto de redenção do feminino”:
Reencantar o viver, quando somos inteiros com a nossa luz e a
nossa sombra.
No conto romeno, há um Rei poderoso e infeliz por
não ter tido filhos, simbolizando uma vida e um reino estéreis, onde nada de
novo acontece. Sua esposa, a rainha, está triste e quer passear de charrete
para se alegrar.
O marido, no entanto, faz um barco - símbolo da
receptividade -, mais brilhante do que o Sol. E diz para ela fazer a sua aventura,
desde que voltasse grávida ou ele não a aceitaria mais.
Como diz Von Franz, fazer uma jornada pela terra
é como tentar resolver um problema através do que já se sabe no consciente (Von
Franz, 2000), contando para si mesmo as mesmas histórias de sempre, que mais encobrem do que dão alguma solução.
Muitas vezes, nos atendimentos de Constelação
Familiar (Familienstellen), pensamos já saber as causas dos problemas
envolvendo o tema que se quer constelar. A abordagem fenomenológica da
Familienstellen, no entanto, revela um outro percurso, jamais imaginado, que dá
um passo para solução e para fora das ruminações que até então explicavam a
questão tratada. (Neste texto e vídeo falo sobre a força da formulação do tema
em uma Constelação Familiar).
Navegar pelo mar, com um barco, como fez a
Rainha, significa se aventurar pelo inconsciente para se deparar com
perspectivas desconhecidas de si mesma e encontrar possíveis soluções para a
sua tristeza e falta de sentido de vida (Von Franz, 2000). É isso que acontece
com a jornada de autodescoberta de Zeinep no Filme “Em uma ilha bem distante.
Neste sentido, o rei escolhendo o barco, e não a
charrete para a esposa passear, estava mais atento ao grande problema enfrentado
pelo reino do que a própria rainha.
Da mesma forma, Josip, o homem instigante e
azedo, cheio de talentos, que Zeinep encontra na ilha da sua mãe, estava mais consciente
das mudanças necessárias para construir uma vida mais plena do que ela, embora
não tivesse conseguido fazê-las até a chegada daquela mulher.
Em sua travessia, a rainha descobre uma ilha, no
meio do oceano, que pertence à Mãe de Deus. Nela há uma árvore cheia de maçãs
douradas, capaz de encantar a imperatriz até o desespero.
Na lenda do Rei Arthur há outra ilha, chamada Avalon
(macieira), representando uma região desconhecida, habitado por seres e feitos
estranhos, no qual o herói e a heroína encontram partes de si mesmo e o ponto
de virada das suas jornadas rumo à inteireza.
As maças simbolizam, nos mitos e contos de fada,
uma fronteira vencida, depois da mordida, entre a vida e a morte, a luz e a
sombra, o corpo e o espírito, o profano e o sagrado e as pluridimensóes.
Zeinep, no filme, também chega em uma ilha
desconhecida que pertence a sua mãe, no meio da noite, na qual encontra o
“fruto proibido e brilhante” dos seus próprios desejos e dos desejos de Josip
que, uma vez “mordido”, abre novos horizontes e maneiras de lidar com os seus
sentimentos, valores e coração. Ou viver infeliz sem esta conexão com sua
sombra, onde estão a outra parte de si mesmo.
Ela, a rainha do conto romeno, sente um desejo avassalador
pelas maças proibidas, a ponto de se sentir doente se não realizasse a sua
vontade.
Billie, em sex/life, também estava adoecendo até realizar
os seus desejos reprimidos.
A Rainha, então, rouba algumas maças, saciando o
que a consumia. Desta forma, descobre que está grávida de 6 meses e o quanto
estava desconectada do seu corpo, instintos e feminino.
A Virgem Maria, dona da ilha desconhecida do
conto “O Gato”, tem características mais afinadas com o arquétipo da Deusa egípcia
Ísis [i],
uma vez que sua ambiguidade entre a luz e a sombra não a atormenta, como quem se
penitencia querendo ser perfeita e aceita e não inteira. Isso aparece quando a
Mãe de Deus envia uma maldição para a rainha grávida, dizendo que se nascesse uma
menina, ela seria uma linda e radiante como o Sol, a ponto de ninguém poder
enxergá-la. E com 17 anos, ela e todo o reino se transformariam em gatos até o
filho de um imperador cortar a cabeça da princesa.
Em outro reino, um imperador rico, tirânico e
viúvo (o feminino aqui já está morto), sobrevive desencantado e sem conexão com
a natureza e sua subjetividade. Para aplacar a dor de um coração que age como
um soco, ele bebe. Para ele, esta era a única forma de buscar “ativamente” a
sua interioridade.
A sensação de ter chegado em um ponto da vida, no
qual nada mais faz a menor diferença, está presente nas personagens principais
de sex/life e “Em uma ilha bem distante”, assim como em alguns parceiros delas.
É por isso que o Imperador Viúvo pede para os
seus 3 filhos lhe trazerem o linho mais fino do mundo, como se a juventude
deles pudesse religar o rei, o reino e eles mesmos às conexões sutis perdidas com
a natureza, com o feminino e com o que conseguisse mantê-los se sentindo vivos.
O primeiro, rapidamente traz um cachorrinho, como
a sua subserviência aos ditames do velho mundo, sendo incapaz de fazer as
mudanças necessárias para transformar o paradigma vigente. O segundo traz um
linho grosseiro, ainda sem os requisitos necessários para reencantar o mundo
deles. E o terceiro se perde na escuridão da floresta até achar o reino dos
gatos.
Esta mesma jornada, sem bússola, para dentro de
uma floresta escura, que tem o “mesmo” simbolismo de uma ilha nos contos de
fada e mitos, está em outro conto chamado
“João de Ferro”, que Robert Bly, um admirador de Marie Louise Von Franz,
interpreta [ii]
como o início da jornada masculina.
Com fome e perdido, o príncipe decide roubar a
comida e as joias do castelo da princesa felina, submetendo o novo mundo, recém-descoberto,
ao velho paradigma de dureza, dominação e objetificação da natureza e da mulher
(Von Franz 2000).
Surgem muitos desafios ao longo desta parte do
conto, fazendo o jovem se transformar em um bom companheiro para se casar com a
princesa Gata. Neste momento, ela pede para o marido, filho de um Imperador, cortar
a sua cauda e, depois, a sua cabeça, livrando a si e o seu reino da praga
imposta antes mesmo do seu nascimento.
A maldição, no caso, é própria vivência de um
povo, cultura, mulheres e homens, independentemente de serem heterossexuais, homossexuais
ou não binários, de estarem desconectados do princípio feminino (ou masculino) como
uma das fontes de realização da própria vida. Ou polarizados demais em um dos princípios,
masculino ou feminino.
A Billie, na série, e Zeinep, no filme, enfrentam
o mesmo desafio, decidindo acolher as riquezas das suas sombras (a cauda e a
cabeça da gata) para serem mais felizes em suas jornadas e, a partir daí, construírem
relacionamentos alicerçados em novas bases, na qual elas pudessem se sentir
mais inteiras.
Quando um animal, em um sonho ou em um conto de
fada, se transforma em humano, algo do mundo das sombras chega à consciência para,
então, se realizar. O gato e sua total liberdade, maternidade positiva,
insubordinação, autenticidade e coragem para ser quem é, sem medo de desagradar,
simboliza as características do princípio feminino, segundo Von Franz (2000).
E ele, o princípio feminino, de fato não pode ser
dominado, domesticado ou colocado em risco para satisfazer as expectativas dos
outros.
Por isso, quando a cauda e a cabeça da gata são
cortadas, a princesa se transforma em uma linda mulher, consciente da luz e da
sombra do seu feminino. E seu marido entra contato com a própria subjetividade,
reencantando o seu viver com novos valores. Além de parar de criticá-la, como fazem
muitos homens em relação aos mistérios do feminino (Von Franz, 2000).
Lá, na ilha distante da Croácia, o marido de Zeinep
e Josip também se transformam, mas só depois de perceberem o desserviço das
lutas que travaram pela mulher que amam, numa cena hilária que desmonta o velho
paradigma de dominação e competição.
O príncipe e a princesa, então, vão para o reino
do Imperador viúvo. Chegando lá, o rei encantado com a beleza da princesa,
tenta estuprá-la e matar o próprio filho para se casar com ela.
Exatamente o que acontece com muitas mulheres que
não querem mais, sem sucesso, ser tratadas como objetos pelos seus
companheiros. Com homens que lutam pelas suas mulheres sem enxerga-las ou dar-lhes
o que elas precisam. E com Billie, na série, e Zeinep, no filme, ao tentarem despertar
seus maridos, em vão, para os problemas dos relacionamentos deles.
O Rei, representando o velho paradigma moribundo,
e o filho, representando o novo paradigma, graças à incorporação do que estava excluído
do reino, brigam.
A princesa intervém, convencendo o marido a
voltar com ela para o reino onde se conheceram e se transformaram em homem e
mulher. Onde os homens e mulheres são bem-vindos para viverem em cooperação e
não em competição.
Onde as mulheres são por inteiro (luz e sombra) e
os homens também, criando completudes, graças à presença, colaboração e
compromisso que estabelecem um com o outro.
Na série Sex/life”, quando a Billie decide
conectar todos os seus desejos, para nunca mais ter que se dividir em duas, coincide
com o momento em que a princesa Gata, no conto de fada, se transforma em uma
mulher por inteiro.
No Filme, “Em uma Ilha bem distante”, é quando
Zeinep faz a sua escolha de acordo com quem ela é, depois de sua jornada de
autoconhecimento desde a fila de mulheres ancestrais até a sua filha adolescente.
Se
quiser saber mais, assista a nossa conversa, “Ser Por Inteiro”, no podcast Benzadeuza. Obrigada, querida Maria Marta pela nossa conversa!
[i] O documentário “Cleópatra” (Netflix) fala um pouco
sobre a deusa egípcia Ísis, pela semelhança do seu mito com a história da
rainha do Egito:
Isis, deusa do amor e da magia em seu mito, era casada com seu irmão
Osiris e inimiga de seus outros irmãos, Néftis (deusa da morte) e Set (deus da
guerra) que mataram Osiris. Ela tinha uma vida ambígua, de Luz e Sombra e uma
conexão plena com sua inteligência, erudição, sexualidade e poder. E um dos
seus animais de poder era o gato.
No Egito há também uma deusa, Sekhmet (A Poderosa), que tem a cabeça de
gato ou leoa. Ela traz epidemias e devastações quando os homens ficam
arrogantes demais.
Na vida real, Cleópatra se casa com um dos seus irmãos, como era a
tradição, para equilibrar as polaridades masculinas e femininas no reino e para
manter o poder nas mãos da sua família. Da mesma forma, ela entra em guerras
mortais com dois de seus irmãos (um deles seu marido) e uma irmã, se portando
como a deusa Néfits e o deus Set, para manter o trono.
Mais tarde, ela é acusada de usar magia para conquistar o Imperador
romano Júlio Cesar, o homem mais podeross do mundo ocidental, naquela época,
que foi assassinado por uma facção de líderes romanos que não concordavam com
sua forma de governar. E, posteriormente, é acusada, mais veementemente, de
magia por conquistar o amor de Marco Antônio, com sua inteligência, poder,
erudição, riquezas (que não reconheciam), beleza e sexualidade, o que a levou a
ser ameaçada e derrotada em uma guerra, por um exército de homens
conquistadores e arrogantes que não suportavam o poder e o brilho solar de uma
mulher por inteiro.
[ii] Bly, Robert. João de Ferro: Um
Livro sobre Homens. Rio de Jabeiro: Editora Campus, 1991.
______
SEX/LIFE
2021 - 2023 /Série Norte-americana/ Netflix
Criado por Stacy Rukeyser
Elenco: Sarah Shahi, Mike Vogel, Adam Demos
FARAWAY ou EM UMA ILHA BEM DISTANTE
Lançado no dia da Mulher, em 2023
Drama, Comédia / Netflix
Direção: Vanessa Jopp
Roteiro: Jane Ainscough
Elenco: Naomi Krauss, Goran Bogdan, Adnan Maral
Título original Faraway
O GATO: UM CONTO DA RENDENÇÃO DO FEMININO
Livro da Série Amor e Psique
Marie-Louise Vom Franz
São Aulo: Paulus, 2000
Mônica Clemente (Manika)
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