Elogio à Loucura no Dia da Luta Antimanicomial
Mônica Clemente (Manika)
Dia 18 de maio celebra-se o Dia da Luta
Antimanicomial, que visa combater o estigma e o preconceito das pessoas em
situação de sofrimento psíquico grave. Mas podia ser o dia do Elogio à Loucura,
se não tivéssemos banido a sabedoria trágica da existência.
Para Nietzsche (século XIX), uma existência
trágica é a afirmação mais sublime da impossibilidade de se ter uma vida plena
sem acolher sua estranheza e idiossincrasias. Séculos antes (XVI), Erasmo
de Roterdã “concordava” com Nietzsche em seu livro “ELOGIO DA LOUCURA”, no qual
a Loucura galanteava a si mesma como a Imperatriz da Humanidade, uma vez que
ninguém podia escapar dela, a "mola oculta da vida".
Ela mesma, como personagem do livro, deixou bem
claro que a Loucura não precisava de um templo para ser louvada, como acontece
com os outros deuses, porque era parte da vida em cada um dos seres
humanos.
Um século depois (XVII), esta dimensão tão
necessária para a saúde das relações foi confinada em hospedarias religiosas de
caridade, cujo nome era hospital. A loucura, personagem do livro de Roterdã, se dizia necessária porque só ela conseguiria lidar e dar um lugar para as peculiaridades humanas sem que se buscasse guerras.
O objetivo subjacente da hospital-idade dos
primeiros hospitais criados, então, servia ao capitalismo que estava nascendo. Era
preciso que se tirasse de circulação pessoas incapazes de fazer a nova ordem
social funcionar. Como disse Basaglia, na reforma psiquiátrica da Itália, durante
a década de 1970,
“O hospício
é construído para controlar e reprimir os trabalhadores que perderam a
capacidade de responder aos interesses capitalistas de produção”
Ou seja, um filósofo rebelde, um artista
inovador (como Van Gogh, Artaud, Lima Barreto e outros), uma pessoa em situação de pobreza, uma esposa rejeitada por um rico
marido, um filho bastardo e todos os que estivessem em sofrimento mental, sem
serem compreendidos, começaram a correr o risco de ser trancafiados por lá. Com o carimbo da lei!
Durante as grandes transformações do mundo
ocidental europeu, com a Revolução Francesa, os hospitais foram paulatinamente tomados
pelo saber médico, com Phillipe Pinel, pai da psiquiátrica e da clínica medica,
libertando os “loucos” dos grilhões, sem livrá-los das paredes e preconceitos
que os confinavam. Seu trabalho foi importantíssimo para a medicina,
embora servisse à um certo tipo de racionalidade incapaz de lidar com dimensões
humanas incompreensíveis para o itinerário intelectual ocidental.
Uma nova ciência nascia, com o objetivo de
entender, dominar e acabar com o que chamavam de desrazão que confrontava os
valores do Iluminismo. A mente estava alienada desta razão e era preciso
restaurá-la. Liberdade, Fraternidade e Igualdade eram só para quem estava de
acordo com a nova ordem mundial.
De lá para cá, muitos manicômios e tratamentos
foram criados, todos baseados na psiquiatria. O que ninguém sabia ou não queria
ver é que estes lugares, e os conhecimentos elaborados por aquela lógica desencantada, como disse Weber, produziam
as mesmas exclusões e violências sociais que “enlouqueceram” quem pretendiam
curar com tratamentos de choque, insulinoterapia, contenção e outras
barbaridades.
O templo para acabar com a loucura sobreviveu
sem muitas críticas, aqui no Brasil, até Lima Barreto denunciar em um livro “Diário do Hospício: Cemitério
dos Vivos”, o que viveu em uma internação (Artaud tinha feito o mesmo na França). E a dra. Nise da Silveira dizer não
para a visão e os tratamentos psiquiátricos, propondo atividades artísticas e a conexão com animais, em
espaços de terapias ocupacionais, para as pessoas com sofrimento mental.
“Dona Ivone Lara (na foto), nossa Rainha do
Samba, teve uma participação importante na história da Luta
Antimanicomial. “Ela trabalhou como enfermeira e assistente social em
hospitais psiquiátricos de 1947 a 1977, e atuou no Serviço Nacional de Doenças
Mentais com a doutora Nise da Silveira, uma das principais referências da luta
antimanicomial no Brasil” (FIOCRUZ, 2018)
No final da Década de 1970 um grupo de
trabalhadores da Saúde Mental do Rio de Janeiro denunciou os maus tratos feitos
aos pacientes e as péssimas condições de trabalhos que estavam submetidos no
Pedro II. Graças a isso, aconteceu uma greve em quatro hospitais psiquiátricos,
culminando na demissão de muitos destes profissionais. Muitos deles começaram o
MTSM, Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental, porque ninguém mais poderia
aceitar as atrocidades que presenciavam.
Se tiver estômago, leia o livro “Holocausto
Brasileiro: Genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil”, de Daniela Arbex.
Um pouco antes, na Itália, o psiquiatra Franco
Basaglia, junto com um grupo de profissionais da saúde mental e pessoas
confinadas em hospitais psiquiátricos já estavam propondo novas abordagens
eficazes e bem diferentes do paradigma psiquiátrico, uma vez que não bastava
reformar a psiquiatria. Tinha que se criar todo um campo de saberes e práticas que
lidassem com o sofrimento psíquico de forma mais complexa e inclusiva e não
necessariamente medicalizada.
A medicalização é o uso dos saberes e jargões biomédicos
para descrever toda e qualquer experiência da vida, até as que não lhes dizem respeitos. Por exemplo, uma pessoa não
consegue mais perceber, nem dizer, que odeia ficar sentada horas, acabando com a sua
coluna e os seus olhos, em um trabalho monótono na frente de uma tela de computador. Diante do seu descorto e da normal incapacidade de docilizar seu corpo a tal tortura, possivelmente, vai suspeitar que sofre um Transtorno de Déficit de Atenção
e Hiperatividade - TDAH. Também pode se diagnosticar com algum grau de autismo,
sem perceber uma tristeza ou raiva subjacente que a isola das relações. Isso quando não
medicaliza seus filhos pelos mesmos motivos, sem perceber outros fatores em
torno do sofrimento da criança.
Por tudo isso, só em 2001, no Brasil, criou-se
a Lei 10.216 que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com
transtorno mental e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.”
A designação “transtorno mental” ainda precisa
ser superada, porque a maioria dos sofrimentos não deveriam ser entendidos como
um transtorno localizado em uma pessoa, mas como o resultado de muitos fatores
que precisam ser compreendidos e transformados, como pretende a reforma psiquiátrica e sua luta antimanicomial.
Por isso, a Luta antimanicomial tem este
enfoque:
Tratar da pessoa com sofrimento mental em
liberdade e em sua integralidade, diminuindo tudo o que pode causar o seu
sofrimento e redirecionando o modelo assistencial.
E todos nós já sabemos que isolar uma pessoa
entre quatro paredes, atacando o sentimento de pertencimento, é o maior
sofrimento que existe, como a Imperatriz da Humanidade (A Loucura) já tinha
avisado no século XVI:
Seu templo é no viver e nas relações.
Mônica Clemente (Manika)
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