17 de set. de 2013

32) A Quarta Função e os Amores Místicos




Com quantos nãos se faz um esquecimento?





          Quando alguém tem a experiência de se defrontar com a sua Quarta Função, explico mais abaixo, poderá vivenciar uma experiência mística, onde vários conteúdos negados desde a mais tenra infância emergem em novas configurações do Si mesmo. Salta-se a um novo (pat)amar de existência, mais ao centro, onde não se pode mais negar a eterna dança das polaridades.

No Ocidente a supervalorização e o desenvolvimento unilateral de uma função psíquica, desconhecendo as outras funções e o paradoxo da existência, lançam muitas das nossas riquezas psíquicas ao entorpecimento. Portanto, junto à quarta função, alocada no inconsciente, estão os tesouros ocultados por repressões e negações antigas, aguardando um movimento de aceitação e inclusão. Estas riquezas e fraquezas podem estar submersas há gerações no inconsciente familiar. Antes desta liberação, que tipo de amor é possível viver?

Quando este movimento de inclusão é sistematicamente negado - e o itinerário intelectual ocidental com sua negação do Eros ou intuição a favor do intelecto tem muito a ver com isso -, algo nos assalta em sonho e na vida abruptamente, principalmente depois da meia idade, 40 anos em diante. Um desejo imenso e desconhecido por tudo o que foi negado nos devora.


 O encontro súbito e desconcertante com a “bruta flor do querer”, depois de anos soterrada sob as camadas arqueológicas do alheamento, é como uma viagem de barco em alto mar  na companhia de um tigre. Na história “As Aventura de Pi”, de Yan Martel “inspirado” na obra “Max e os Felinos” do nosso Moacir Scliar, a fera, um tigre, e o jovem náufrago dividem um mesmo bote depois do naufrágio do navio que os levava para outro continente. Eles só  conseguem equacionar a insólita convivência depois de perceber que um não podia sobreviver sem o outro num bote a deriva nas intemperanças do mar (da vida?).  O lado bruto, se interpretado como aquela parte inconsciente dentro de nós, assombra os dois viajantes. No menino é a conexão oculta com as caudas ancestrais que o liga a um processo milenar de transformações e no tigre o que ainda é latente.  Quase ao final da história, já em terra firme são e salvos, o felino segue mata adentro sem olhar para trás. Cada um pertencia a polaridades ou universos diferentes, e que, durante sua jornada, descobriram-se como partes inseparáveis de si mesmos.

Este encontro entre nossa adaptação consciente ao mundo com a dimensão desconhecida ancorada no inconsciente (a quarta função, segundo Jung), e tudo o que está preso a ela e negamos, evoca o extraordinário podendo ser chamado de místico nas tradições espiritualistas orientais, se bem conduzias. Quando não há práticas sistematizadas para tal fim, ou formas criativas de viver que acolham este encontro como a própria cultura, os dramas da vida vêm em auxílio aos excluídos. Eles, os dramas, seriam a noite de núpcias dos amantes cósmicos, quando enfim eles se encontram pela primeira vez na forma de paixões ou crises avassaladoras, e cada um de nós e o que nos tornamos depois deste encontro, o êxtase.


Foto Christina Hope, 1989


Qual é a sua “bruta flor do querer”?

O que te devora?

 A QUARTA FUNÇÃO

O psiquiatra suíço Carl G. Jung observou como cada um de nós se relacionava com o mundo. Já escrevi sobre isto aqui.  Ele observou pessoas mais voltadas ao mundo exterior (extrovertido) e outras mais familiarizadas ao universo interior (introvertido). Este é o movimento da libido, impulsionando em direção à melhor adaptação ao mundo. Esta escolha tem a ver com tendências pessoais no contato com o entorno social, cultural e familiar.  Podemos dizer que o que é permitido e negado dentro de um sistema familiar e da nossa cultura contribui também para as adaptações aceitáveis e as recursivas negações.

Se uma pessoa se sente energizada com o contato com o mundo, ela tem tendência à extroversão. Caso ela fique muito cansada com o contato direto e sistemático com seu entorno sua orientação é a introversão. Tanto uma tendência como a outra terá necessidade de atuar o seu oposto, mas em menor escala.

O jogo de interações entre a pessoa e o mundo empurrando sua libido para o universo interior ou exterior também busca adaptação por meio de funções da consciência. Segundo Jung, são 4 as formas de se  adaptar vezes 2 (introversão e extroversão).

As 4 funções são compostas por duas adaptações racionais capazes de julgar (Sentimento e Pensamento), e duas irracionais capazes de perceber sem se preocupar com valores ou um conhecimento prévio (Sensação e Intuição). O relacionamento com o mundo se dá, então, ou pela aptidão do julgamento ou da percepção.

 Tanto a função sentimento quanto a função pensamento podem julgar a sua maneira e, portanto, são racionais, porém elas se polarizam entre si. Quando o pensamento é a primeira função ou a principal, o sentimento cairá no inconsciente se tornando a QUARTA FUNÇÃO ou função inferior – sem nenhum ajuizamento de valor nesta afirmação. O nome de quarta função se dá porque as outras duas funções da consciência que também se polarizam entre si, no caso a função intuição e a função sensação, se tornam a segunda e a terceira função ou as funções auxiliares deste primeiro esquema.

Há 16 combinações possíveis, esta é apenas uma delas (Ao final deste texto tem links sobre o assunto)*:




Em outro esquema, se a sensação ou a intuição que percebem o mundo por impressão ou revelação respectivamente, e, portanto, são irracionais, são a função principal e a quarta função, o pensamento e o sentimento se tornam as funções auxiliares.



Cada um de nós se adapta ao mundo com uma destas 4 tendências da consciência, somada à orientação para dentro (introversão) ou para fora (extroversão), mais a função auxiliar, alternando a direção da libido (16 esquemas psicológicos). Uma pessoa pode se orientar na vida muito mais pelo pensamento extrovertido, como muitos executivos, enquanto outra se relaciona com o mundo pelos sentimentos introvertidos e sua incrível capacidade de curar, ou ainda pelas impressões no aqui e agora (sensação extrovertida) ou por insights que ainda ninguém vislumbrou no inconsciente coletivo (intuição introvertida).

Só para ilustrar,  um intuitivo introvertido terá vislumbres sobre o inconsciente e todo seu mundo imagético falando coisas bizarras para uma dada era, que se confirmam algum tempo depois. Já o intuitivo extrovertido vislumbrará o primeiro passo na Lua e um computador na palma da mão quando todos diziam ser impossível. Um pensamento extrovertido será capaz de colocar uma empresa em pé com estratégias bem objetivas e ampliar seu capital podendo dar conta de muitas frentes de trabalho, uma pessoa com adaptação da consciência pela Função Sensação Introvertida terá uma atenção ao detalhe quase desconcertante para os humanos mais estabanados com o seu próprio corpo, enquanto o sentimento extrovertido fará a melhor festa do mundo entrosando tribos díspares entre si.

O que Jung também observou, como bom intuitivo introvertido (desbravador do inconsciente coletivo), é que nossa tendência foi supervalorizar a função principal e a secundária ou auxiliar e esquecer as outras e o constante jogo entre elas. Então, se uma pessoa tem como função principal, por exemplo, a sensação, e esta é extrovertida, se sentirá bem desajeitado com sua polaridade ancorada no inconsciente (quarta função), a intuição introvertida.  Quando alguém perguntar o signo astrológico dela, por exemplo, chegará a ter “urticária” e dirá que odeia estas charlatanices. É verdade que uma pessoa pode ter preconceitos em relação à astrologia e não ter a função sensação extrovertida como sua adaptação principal, mas quem tem esta função da consciência mais desenvolvida não terá tantos interesses semióticos quanto sinestésicos. Já aquele com a função Intuitiva introvertida mais desenvolvida, que tem como a quarta função a sensação extrovertida, não se importará muito em pagar uma aposentadoria e dirá, como que vivendo em um mundo de sonhos e arco-íris, que nunca envelhecerá.

Pintura Erik Alos


 Por outro lado, estas polarizações, se devidamente consideradas,  geram movimento e amadurecimento psicológico. Quer dizer,  caso a pessoa consiga ir desenvolvendo algumas atividades de sua segunda e terceira função e ter, bem de leve, algum treinamento para a quarta função. Não é aconselhável forçar, ou pular direto para o treinamento da quarta função, isto seria como fazer uma sereia andar de bicicleta no ar.  Ela nasceu para o mar... (até conhecer o náufrago!).

Mas, durante a metanoia, quando na meia idade as  polaridades se invertem para expandir a existência, se uma pessoa nega demais tudo àquilo que se refere à sua quarta função, haverá uma inversão desconcertante dos polos. O que estava submerso eclode como assombração trazendo consigo, descontroladamente, facetas ocultas da totalidade do ser.

Como diz Jung, “….A união dos opostos num nível mais alto da consciência, (...), não é uma questão racional e muito menos uma questão de vontade, mas um processo de desenvolvimento psíquico, que se exprime em símbolos. Historicamente, este processo sempre foi representado através de símbolos e ainda hoje o desenvolvimento da personalidade individual é figurado mediante imagens simbólicas” (Jung, 2001).




Four Mandalas: 14h centaury tibetan thangka painting anonymous tibetan painter
Um Thangka é uma arte budista com valores simbólicos.


A tal de crise da meia idade vira uma provação avassalante. Um problema no trabalho, uma nova configuração na família, uma doença, um acidente ou uma nova paixão com alguém tão diferente podem se mostrar insuperáveis exigindo toda uma nova maneira de ser no mundo. O que estava soterrado vem à tona, e o que era luz desce ao mundo das trevas.

De repente, aquele bico de papagaio inofensivo paralisa a pessoa na cama que se depara com problemas nos negócios, com os filhos indo embora, ou uma gravidez aos 45 do segundo tempo, com o casamento desmoronando ou uma nova profissão que não pode mais esperar e, finalmente, com uma paixão descontrolada por uma pessoa muito diferente. Estas situações, “normais”, são a ponta do iceberg, agora de ponta cabeça trazendo, e de alguma maneira personificando, toda a sombra negada, alojada no inconsciente e grudada à quarta função.  

Tudo o que família, cultura e a própria pessoa negou veementemente rompe o dique. Alguns tentarão  fechar o estrago com chiclete, arriscando reduzir este encontro quântico, esta iniciação ou descida aos infernos, com o mesmo chavão apaziguador de outrora: “é só uma trepada”, “é minha alma gêmea (a quinta nos últimos 10 anos)”, “é uma crise nos negócios que se resolve com mais um empréstimo”, “o filho vai voltar ele sempre volta”, etc. O problema é que no lugar da paz almejada com as velhas explicações aparece o tigre.

Como é o seu tigre? Que tesouros ele traz?

A função principal, por sua vez, diminui sua força e já não trabalha a pleno vapor. Ela cede lugar ao que nunca teve espaço de ser.  Está-se perdido em alto mar. Já não se intui como antes, ou não se pensa mais com aquela lógica cortadora de cabeças capaz de salvar qualquer empresa da falência, ou não se sente com a mesma desenvoltura carismática e sedutora nos meios sociais, ou se descuida das coisas práticas da vida que se fazia de olhos fechados com 5 iphones e 1 micro-ondas.

Estamos dentro de um barquinho unilateral avesso aos jogos das polaridades, no meio de um oceano inóspito aos medicamentos controlados, encarando uma fera faminta cheia de garras e dentes pontiagudos que reluzem nossas facetas adormecidas.  Quantos de nós, ao tentar controlar o processo respondendo a ele como um disco arranhado nos códigos de outrora, seremos devorados pelos próprios fiascos?

Eu!

A primeira função acostumada a ser um grande e feroz rio desbravador de vales e montanhas cederá diante do desconhecido deserto escaldante? Nunca!  E quando virar uma pocinha?   

Em todo o caso, o tigre está a serviço do resgate dos tesouros perdidos no inconsciente.  Por isso, às vezes, não ficamos com a paixão da nossa vida ou não conseguimos reverter um desmoronamento no trabalho ou no casamento, eram só pretextos para nos tirar de uma vida insustentável. 


Como a fera, é preciso voltar para o mundo selvagem sem olhar para trás e deixar o náufrago (nós mesmos) acordar para a sua nova vida. Ganhamos algo diferente depois desta provação, o amor místico que não nega nem projeta  em seu amar sem fim.





O QUERERES (Caetano Veloso)
intérprete Maria Bethânia

Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
Onde queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde o queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês
Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói
Eu queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock?n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus
O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é em mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há, e do que não há em mim

*Os analistas junguianos podem ajudar nesta jornada de autodescoberta. Há também testes para pesquisar a nossa adaptação da consciência ao mundo (função principal) e a segunda, terceira e quarta função, mas leva algum tempo para descobri-las e confrontá-las com a nossa realidade. Coloco abaixo alguns links se interessar:



       

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