Com
quantos nãos se faz um esquecimento?
Quando alguém tem a experiência de se
defrontar com a sua Quarta Função, explico mais abaixo, poderá vivenciar uma
experiência mística, onde vários conteúdos negados desde a mais tenra infância emergem
em novas configurações do Si mesmo. Salta-se a um novo (pat)amar de existência,
mais ao centro, onde não se pode mais negar a eterna dança das polaridades.
No Ocidente a supervalorização e o
desenvolvimento unilateral de uma função psíquica, desconhecendo as outras
funções e o paradoxo da existência, lançam muitas das nossas riquezas psíquicas
ao entorpecimento.
Portanto, junto à quarta função, alocada no inconsciente, estão os tesouros
ocultados por repressões e negações antigas, aguardando um movimento de aceitação
e inclusão. Estas riquezas e fraquezas podem estar submersas há gerações no
inconsciente familiar. Antes desta liberação, que tipo de amor é possível viver?
Quando
este movimento de inclusão é sistematicamente negado - e o itinerário
intelectual ocidental com sua negação do Eros ou intuição a favor do intelecto tem
muito a ver com isso -, algo nos assalta em sonho e na vida abruptamente,
principalmente depois da meia idade, 40 anos em diante. Um desejo imenso e
desconhecido por tudo o que foi negado nos devora.
O encontro súbito e desconcertante com a “bruta
flor do querer”, depois de anos soterrada sob as camadas arqueológicas do alheamento, é como uma viagem de barco em alto mar na companhia de um tigre. Na história “As
Aventura de Pi”, de Yan Martel “inspirado” na obra “Max e os Felinos” do nosso
Moacir Scliar, a fera, um tigre, e o jovem náufrago dividem um mesmo bote
depois do naufrágio do navio que os levava para outro continente. Eles só conseguem equacionar a insólita convivência
depois de perceber que um não podia sobreviver sem o outro num bote a deriva nas
intemperanças do mar (da vida?). O lado bruto,
se interpretado como aquela parte inconsciente dentro de nós, assombra os dois
viajantes. No menino é a conexão oculta com as caudas ancestrais que o liga a
um processo milenar de transformações e no tigre o que ainda é latente. Quase ao final da história, já em terra firme
são e salvos, o felino segue mata adentro sem olhar para trás. Cada um pertencia
a polaridades ou universos diferentes, e que, durante sua jornada, descobriram-se
como partes inseparáveis de si mesmos.
Este
encontro entre nossa adaptação consciente ao mundo com a dimensão desconhecida ancorada
no inconsciente (a quarta função, segundo Jung), e tudo o que está preso a ela
e negamos, evoca o extraordinário podendo ser chamado de místico nas tradições
espiritualistas orientais, se bem conduzias. Quando não há práticas
sistematizadas para tal fim, ou formas criativas de viver que acolham este
encontro como a própria cultura, os dramas da vida vêm em auxílio aos
excluídos. Eles, os dramas, seriam a noite de núpcias dos amantes cósmicos,
quando enfim eles se encontram pela primeira vez na forma de paixões ou crises avassaladoras,
e cada um de nós e o que nos tornamos depois deste encontro, o êxtase.
Foto Christina Hope, 1989
Qual é a sua “bruta flor do
querer”?
O que te devora?
A QUARTA FUNÇÃO
O
psiquiatra suíço Carl G. Jung observou como cada um de nós se relacionava com o
mundo. Já escrevi sobre isto aqui. Ele observou
pessoas mais voltadas ao mundo exterior (extrovertido) e outras mais
familiarizadas ao universo interior (introvertido). Este é o movimento da
libido, impulsionando em direção à melhor adaptação ao mundo. Esta escolha tem
a ver com tendências pessoais no contato com o entorno social, cultural e
familiar. Podemos dizer que o que é
permitido e negado dentro de um sistema familiar e da nossa cultura contribui também
para as adaptações aceitáveis e as recursivas negações.
Se
uma pessoa se sente energizada com o contato com o mundo, ela tem tendência à
extroversão. Caso ela fique muito cansada com o contato direto e sistemático
com seu entorno sua orientação é a introversão. Tanto uma tendência como a outra
terá necessidade de atuar o seu oposto, mas em menor escala.
O
jogo de interações entre a pessoa e o mundo empurrando sua libido para o
universo interior ou exterior também busca adaptação por meio de funções da
consciência. Segundo Jung, são 4 as formas de se adaptar vezes 2 (introversão e extroversão).
As
4 funções são compostas por duas adaptações racionais capazes de julgar (Sentimento e Pensamento), e
duas irracionais capazes de perceber sem
se preocupar com valores ou um conhecimento prévio (Sensação e Intuição). O
relacionamento com o mundo se dá, então, ou pela aptidão do julgamento ou da percepção.
Tanto a função sentimento quanto a função
pensamento podem julgar a sua maneira e, portanto, são racionais, porém elas se
polarizam entre si. Quando o pensamento é a primeira função ou a principal, o
sentimento cairá no inconsciente se tornando a QUARTA FUNÇÃO ou função inferior
– sem nenhum ajuizamento de valor nesta afirmação. O nome de quarta função se
dá porque as outras duas funções da consciência que também se polarizam entre
si, no caso a função intuição e a função sensação, se tornam a segunda e a
terceira função ou as funções auxiliares deste primeiro esquema.
Há
16 combinações possíveis, esta é apenas uma delas (Ao final deste texto tem links sobre o assunto)*:
Em
outro esquema, se a sensação ou a intuição que percebem o mundo por impressão ou
revelação respectivamente, e, portanto, são irracionais, são a função principal
e a quarta função, o pensamento e o sentimento se tornam as funções auxiliares.
Cada
um de nós se adapta ao mundo com uma destas 4 tendências da consciência, somada
à orientação para dentro (introversão) ou para fora (extroversão), mais a
função auxiliar, alternando a direção da libido (16 esquemas psicológicos). Uma
pessoa pode se orientar na vida muito mais pelo pensamento extrovertido, como
muitos executivos, enquanto outra se relaciona com o mundo pelos sentimentos
introvertidos e sua incrível capacidade de curar, ou ainda pelas impressões no
aqui e agora (sensação extrovertida) ou por insights que ainda ninguém vislumbrou
no inconsciente coletivo (intuição introvertida).
Só
para ilustrar, um intuitivo introvertido
terá vislumbres sobre o inconsciente e todo seu mundo imagético falando coisas
bizarras para uma dada era, que se confirmam algum tempo depois. Já o intuitivo
extrovertido vislumbrará o primeiro passo na Lua e um computador na palma da
mão quando todos diziam ser impossível. Um pensamento extrovertido será capaz
de colocar uma empresa em pé com estratégias bem objetivas e ampliar seu
capital podendo dar conta de muitas frentes de trabalho, uma pessoa com
adaptação da consciência pela Função Sensação Introvertida terá uma atenção ao
detalhe quase desconcertante para os humanos mais estabanados com o seu próprio
corpo, enquanto o sentimento extrovertido fará a melhor festa do mundo
entrosando tribos díspares entre si.
O
que Jung também observou, como bom intuitivo introvertido (desbravador do
inconsciente coletivo), é que nossa tendência foi supervalorizar a função
principal e a secundária ou auxiliar e esquecer as outras e o constante jogo
entre elas. Então, se uma pessoa tem como função principal, por exemplo, a
sensação, e esta é extrovertida, se sentirá bem desajeitado com sua polaridade
ancorada no inconsciente (quarta função), a intuição introvertida. Quando alguém perguntar o signo astrológico dela,
por exemplo, chegará a ter “urticária” e dirá que odeia estas charlatanices. É
verdade que uma pessoa pode ter preconceitos em relação à astrologia e não ter
a função sensação extrovertida como sua adaptação principal, mas quem tem esta função
da consciência mais desenvolvida não terá tantos interesses semióticos quanto
sinestésicos. Já aquele com a função Intuitiva introvertida mais desenvolvida,
que tem como a quarta função a sensação extrovertida, não se importará muito em
pagar uma aposentadoria e dirá, como que vivendo em um mundo de sonhos e
arco-íris, que nunca envelhecerá.
Pintura Erik Alos
Por outro lado, estas polarizações, se
devidamente consideradas, geram
movimento e amadurecimento psicológico. Quer dizer, caso a pessoa consiga ir desenvolvendo algumas
atividades de sua segunda e terceira função e ter, bem de leve, algum
treinamento para a quarta função. Não é aconselhável forçar, ou pular direto
para o treinamento da quarta função, isto seria como fazer uma sereia andar de
bicicleta no ar. Ela nasceu para o
mar... (até conhecer o náufrago!).
Mas,
durante a metanoia, quando na meia idade as polaridades se invertem para expandir a
existência, se uma pessoa nega demais tudo àquilo que se refere à sua quarta
função, haverá uma inversão desconcertante dos polos. O que estava submerso
eclode como assombração trazendo consigo, descontroladamente, facetas ocultas
da totalidade do ser.
Como diz Jung, “….A
união dos opostos num nível mais alto da consciência, (...), não é uma questão
racional e muito menos uma questão de vontade, mas um processo de
desenvolvimento psíquico, que se exprime em símbolos. Historicamente, este
processo sempre foi representado através de símbolos e ainda hoje o
desenvolvimento da personalidade individual é figurado mediante imagens
simbólicas” (Jung, 2001).
Four Mandalas: 14h centaury tibetan thangka painting anonymous tibetan painter
Um Thangka é uma arte budista com valores simbólicos.
A
tal de crise da meia idade vira uma provação avassalante. Um problema no
trabalho, uma nova configuração na família, uma doença, um acidente ou uma nova
paixão com alguém tão diferente podem se mostrar insuperáveis exigindo toda uma
nova maneira de ser no mundo. O que estava soterrado vem à tona, e o que era
luz desce ao mundo das trevas.
De
repente, aquele bico de papagaio inofensivo paralisa a pessoa na cama que se depara
com problemas nos negócios, com os filhos indo embora, ou uma gravidez aos 45
do segundo tempo, com o casamento desmoronando ou uma nova profissão que não
pode mais esperar e, finalmente, com uma paixão descontrolada por uma pessoa
muito diferente. Estas situações, “normais”, são a ponta do iceberg, agora de
ponta cabeça trazendo, e de alguma maneira personificando, toda a sombra negada, alojada no inconsciente e grudada à quarta função.
Tudo
o que família, cultura e a própria pessoa negou veementemente rompe o
dique. Alguns tentarão fechar o estrago
com chiclete, arriscando reduzir este encontro quântico, esta iniciação ou
descida aos infernos, com o mesmo chavão apaziguador de outrora: “é só uma
trepada”, “é minha alma gêmea (a quinta nos últimos 10 anos)”, “é uma crise nos
negócios que se resolve com mais um empréstimo”, “o filho vai voltar ele sempre
volta”, etc. O problema é que no lugar da paz almejada com as velhas
explicações aparece o tigre.
Como
é o seu tigre? Que tesouros ele traz?
A
função principal, por sua vez, diminui sua força e já não trabalha a pleno
vapor. Ela cede lugar ao que nunca teve espaço de ser. Está-se perdido em alto mar. Já não se intui
como antes, ou não se pensa mais com aquela lógica cortadora de cabeças capaz
de salvar qualquer empresa da falência, ou não se sente com a mesma desenvoltura
carismática e sedutora nos meios sociais, ou se descuida das coisas práticas da
vida que se fazia de olhos fechados com 5 iphones e 1 micro-ondas.
Estamos
dentro de um barquinho unilateral avesso aos jogos das polaridades, no meio de
um oceano inóspito aos medicamentos controlados, encarando uma fera faminta cheia
de garras e dentes pontiagudos que reluzem nossas facetas adormecidas. Quantos de nós, ao tentar controlar o
processo respondendo a ele como um disco arranhado nos códigos de outrora, seremos
devorados pelos próprios fiascos?
Eu!
A
primeira função acostumada a ser um grande e feroz rio desbravador de vales e
montanhas cederá diante do desconhecido deserto escaldante? Nunca! E quando virar uma pocinha?
Em
todo o caso, o tigre está a serviço do resgate dos tesouros perdidos no
inconsciente. Por isso, às vezes, não
ficamos com a paixão da nossa vida ou não conseguimos reverter um
desmoronamento no trabalho ou no casamento, eram só pretextos para nos tirar de
uma vida insustentável.
Como a fera, é preciso voltar para o mundo selvagem sem
olhar para trás e deixar o náufrago (nós mesmos) acordar para a sua nova vida. Ganhamos
algo diferente depois desta provação, o amor místico que não nega nem projeta em seu amar sem fim.
O QUERERES (Caetano Veloso)
intérprete
Maria Bethânia
Onde
queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não
E onde não queres nada, nada falta
E onde voas bem alto, eu sou o chão
E onde pisas o chão, minha alma salta
E ganha liberdade na amplidão
Onde
queres família, sou maluco
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde o queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês
E onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco
E onde queres eunuco, garanhão
Onde queres o sim e o não, talvez
E onde vês, eu não vislumbro razão
Onde o queres o lobo, eu sou o irmão
E onde queres cowboy, eu sou chinês
Ah!
Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor
Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde
queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói
Eu
queria querer-te amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah!
Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor
Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde
queres comício, flipper-vídeo
E onde queres romance, rock?n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus
E onde queres romance, rock?n roll
Onde queres a lua, eu sou o sol
E onde a pura natura, o inseticídio
Onde queres mistério, eu sou a luz
E onde queres um canto, o mundo inteiro
Onde queres quaresma, fevereiro
E onde queres coqueiro, eu sou obus
O
quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é em mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há, e do que não há em mim
Do que em mim é em mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
E eu querendo querer-te sem ter fim
E, querendo-te, aprender o total
Do querer que há, e do que não há em mim
*Os
analistas junguianos podem ajudar nesta jornada de autodescoberta. Há também
testes para pesquisar a nossa adaptação da consciência ao mundo (função
principal) e a segunda, terceira e quarta função, mas leva algum tempo para
descobri-las e confrontá-las com a nossa realidade. Coloco abaixo alguns links
se interessar:
Resumo
muito bem feito das 4 funções:
http://psicologia-cgjung.blogspot.com.br/2010/04/os-tipos-psicologicos.html
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