A jornada pelos roteiros ocultos que
atuam sobre nós está calçada em dinâmicas familiares ancestrais. Vivi está experiência quando algumas moças ao lado da casa silenciosa, onde sou acolhida quando estou em Porto Alegre, gritavam esganiçadas e, para
a minha raiva, estavam sem alma como se faltasse alegria verdadeira naquela
euforia festiva. Mas era eu quem estava surda para o que diziam.
Encontro do Historias aqui no RJ em 2018
Sobressaltada e não querendo me estressar, fui ler a
dimensão histórica do processo de análise no livro “Archetipal Dimensions ofthe Psiche” da Marie-Louise Von Franz. Em seu divã, a psicanalista junguiana
testemunha que cada indivíduo carrega dentro de si nas camadas mais profundas
da sua psique, “todo o passado histórico de seu povo e até da humanidade como
um todo”.
No sonho de um paciente italiano, por exemplo,
apareceu Hermes, ao invés do anjo da morte do cristianismo, anunciando uma
doença que tiraria a sua vida. Quem entra no Uffizi em Firenze sabe muito bem
quem são os Deuses da Itália. Em outro analisando coreano de Von Franz surgiram
temas xamânicos pré-budistas. Nos próprios sonhos da analista ela tomava vinho
com ancestrais medievais. Nos meus sonhos me visitam o mar e filhas indígenas.
Tenho duas bisavós guarani e tupinambá, materna e paterna. E os Guaranis têm
uma ligação simbólica bem forte com o mar - e eu nem sabia disso.
Em teus sonhos, quais os temas ancestrais te visitam
até as suas raízes?
O sonho de um analisando mexicano revelou para Von
Franz sua ligação com os Astecas e com ela uma mágoa de 4 séculos. Este
encontro transgeracional lá nas camadas subterrâneas do seu psiquismo o liberou
de uma desorientação neurótica atual. Ele não podia revelar suas origens graças
ao racismo do meio em que vivia, assim como não podia acessar sua história
graças à aniquilação da cultura de seu povo por Cortés com sua missão pseudocristã
há séculos atrás. Ao reconhecer estes estratos profundos de sua história
pessoal/coletiva, pode reconciliar com a força dos símbolos de seus
antepassados e até dos símbolos cristãos que os incorporaram.
Nas Constelações Familiares com temas de guerras, a
cura pode surgir quando se olham os mortos com amor, como nos mostrou o Hellinger, mas também quando se reconhece, por exemplo, no nome de um Santo ou
guerreiro dado a um neto ou a uma bisneta a história pregressa. São como a senha oculta que se conecta com a cultura destroçada de um povo. Assim não só choramos e olhamos
com amor a morte dos dois povos que guerreavam, reconciliando no coração nosso
parentesco de sangue com tudo o que existe, mas também nos conectamos ao
"fio da meada" perdido da nossa história, guardado naquele nome que
passa de pai para o filho ou do mito de um povo para as futuras gerações.
Esta conexão com a nossa cultura e a nossa cultura
ancestral funda a espinha dorsal da nossa identidade e de todo um povo, como
diz P.R.Sarkar. E ele evidencia este aforismo ao mostrar como o mercado estrangeiro
se impõe sobre outra cultura quebrando a espinha dorsal daquela gente,
invisibilizando-a ou criminalizando quem se quer dominar.
Fazemos da mesma forma quando desconsideramos a
família e valores do cônjuge com a intenção de submete-lo/a aos nossos valores,
ou quando fazemos ou sofremos alienação parental, ou mesmo quando achamos que uma das
nossas raízes não presta. Acontece também quando se ataca os centros de umbanda
e candomblé, ou se rouba a terra e aniquila outros rituais e símbolos dos povos
que se quer subjugar.
Karstadt. Personal Identity 2003-14.
Self-portraits with sewn-in original documents, birth certificate, SIM cards
Desta forma, vagando sem identidade e com o nosso
psiquismo sedento por achar uma plataforma cultural para se manifestar e
continuar crescendo psiquicamente e espiritualmente – natureza de nossa mente,
segundo o yoga -, somos conduzidos às compras nos santuários dos mercados, como
se lá houvesse algum pontilhão para a nossa identidade se fundar e a nossa neurose
sanar.
Consumimos então plastic food, bebemos como se Dionísio
pudesse chegar e se rebelar contra as opressões, fazemos filas para a última geração
do iphone e imitamos os semideuses do cinema e da televisão. E isso é tudo o que os juros dos cartões de
crédito, o lucro descabido dos bancos, os patos gigantes, os senhores da guerra
precisam. Todos os vampiros que surgem em épocas de transições [i]
precisam da nossa cabeça vazia, nocauteados, sem capacidade para fazer trocas
simbólicas, dessimbolizados e sem raízes, para continuarem sugando a nossa
energia, inclusive na forma de dinheiro.
Dinheiro muitas vezes conseguido numa profissão que odiamos
e nos neurotiza mais ainda - hiato entre quem somos e o mundo, preenchido com
um modo de vida sem sentido, mas que dizem e impõe como bom e o certo. E “ai” da
gente se não tivermos carteira de trabalho, que agora querem tirar.
Chega, então, aquele momento diante daquela pilha de
roupas novas, 10 diplomas e 5 crushes que nos perguntamos quem somos afinal?
Para que tudo isso se não encontro um sentido de vida? Nesta hora alguns de nós
buscam um caminho espiritual, outros, terapia e ainda outros alguns
medicamentos, drogas ou mais consumismo ainda. Se estamos afinados com a nossa
cultura, a terapia pode ajudar a escapar do vazio, se além disso estamos em
ordem com nossos pais, o caminho espiritual é uma benção. Mas para muitos de
nós falta ainda alguma coisa, sem a qual não há alívio: o contato reverente
com a nossa história e cultura ancestral.
Como estas raízes são feitas de arquétipos,
elementos primários da mente humana, a forma de acessá-las é conhecendo a história,
os nossos mitos e contos afins, assim como ter acesso ao princípio feminino e
masculino e suas várias facetas. E aí está outro desafio: várias facetas do princípio
feminino foram banidas na nossa cultura. O princípio masculino se mantém,
distorcido é verdade, mas o feminino tem sido banido.
Desde Lilith, aquela “safada” substituída por Eva bela, recatada e do Lar, que este princípio foi demonizado. O curioso é que Eva
escuta a serpente, que é a Lilith demonizada no mito do paraíso, e tudo fall a
part. Nossa cultura cristã é fundada numa queda por causa de duas mulheres e um
homem facilmente seduzido. Eu consigo ver esta passagem mitológica no que aconteceu
politicamente no Brasil em 2016.
Mitologicamente, então, o corpo de Cristo subiu aos
céus, mas o corpo da mulher onde o lado instintivo da vida se apresenta em toda
a sua pujança nos nascimentos, não! Religião e instinto não são polos opostos,
mas aqui no Ocidente e em outras tradições viraram inimigos e, claro, a mulher,
a serpente e a natureza, devem ser torturadas para revelar os seus segredos,
segundo Bacon. Na ciência a polaridade cultura e natureza se estruturou sem
reconciliação e o corpo e a mente não mais se encontram. Na revolução
industrial os homens têm acesso aos meios de produção e então a um salário, mas
a sua força de trabalho foi quebrada em vários eixos para o lucro do patrão. As
mulheres e tudo o que faziam artesanalmente também é industrializado, então
seus afazeres tão necessários não têm mais importância na nova ordem que surgia,
e como o seu trabalho de cuidar da família não é visto como força remunerável no
mundo capitalista, MAS SÃO, seus esforços ficam invisíveis diante de toda
riqueza construída!
Haja constelação empresarial onde a esposa e a mãe
surgem como a solução que não era nem vista!
Sem falar que
a saída do campo para a cidade desenraizou homens e mulheres. Sem acesso aos
mitos, desconhecendo a nossa história, mergulhados
em trocas de mercado sem trocas de sentidos, com o corpo e os saberes cindidos e com várias dimensões
do feminino negadas, caminhamos para o abismo? Como é que se pode reconciliar com o
que foi ruído?
Bem, os contos de fada estão cheios de Reis doentes
que esperam que um dos filhos liberte uma princesa para fazer um novo reinado.
A questão é que uma nova ordem surge e não mais a antiga, incorporando aqueles que
um dia foram excluídos.
As mulheres aqui ao lado pararam de gritar dez
minutos depois de me acordarem a meia-noite, mas as que estão em mim ainda não! Só consegui escutá-las graças as bacantes que eu, soberbamente, critiquei. São 7:44 da manhã. Preciso acordar!
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