Mônica Clemente
Melancolia - Vik Muniz
Antes de
tentar alinhavar a melancolia com as Constelações Familiares, vou descrever um
pouco como a “alma” e a “Grande Alma” se apresentam numa vivência de constelação.
Depois, vou falar um pouco sobre a melancolia e, finalmente, compartilhar o que
tenho experimentado com o olhar e esta “contração cadavérica” (ASSIS, Machado
de. Memórias Póstumas de Brás Cubas).
Sobre a Alma
e a Grande Alma: No processo fenomenológico
– estar diante de um acontecimento se deixando afetar por ele sem intenções,
temores e teorias - das Constelações Familiares tem sido revelado o contexto do
qual surgimos, ou o “último” (Hellinger, 2007), onde vivos e mortos
compartilham destinos. Este contexto, Hellinger chamou de alma. Esta alma
não está desvinculada do corpo, na verdade é a tecelã e a mantenedora de sua
organicidade potente. Daí se podem
tirar duas conclusões: a primeira é a de que não há dualismo corpo/alma, como
desde o Orfismo (VII a.C.) se tem pronunciado; e a segunda é de que a alma não
pode ser individual, mas um campo onde explodem vidas e permanecem os
mortos.
Como se dá
isso não é a questão, mas vale pensar que o ancestral já falecido está lá, com
sua história e destino, no mesmo manancial da pessoa viva. Eles se afetam, como
as vivências das constelações têm revelado.
A verdade,
como uma revelação efêmera, segundo a fenomenologia, inverte a ideia, ao menos
cristã, de que temos uma alma. O que se tem observado nestas vivências é que
estamos num “caldo” coletivo, familiar, uma alma grupal alinhavando os
percursos dos vivos e mortos. Um itinerário "placentar"? Este
arcabouço também pertence à outra esfera maior, emaranhado no que Hellinger
chama de a Grande Alma. Sem que seja necessário dar nenhuma base religiosa
para esta "sopa" que mantém entrelaçados tantos destinos, a alma não
é individual, muito menos a Grande Alma. Apesar de nossa experiência ser única,
a alma e a Grande Alma não estão separadas do corpo e da história coletiva e
individual, deixando um registro de gerações. Acredito que os mitos são prova
disso. Nesta concepção, quando se morre, a alma não sai do corpo, o corpo deixa
de ser organizado por ela. Na verdade, a alma coletiva deixa de ser organizada
num indivíduo, quando se morre, e volta ao manancial coletivo. É como uma peça
de tricô que se desafaz, mas pertence ainda ao mesmo novelo de onde se tecem novas
peças e já foram tecidas tantas outras.
Confuso?
O que quero
salientar é que nesta percepção, revelada nas constelações (e o yoga já fala
disso há muito tempo), a alma não é individual, é coletiva, familiar e está
numa Grande Alma. O que sentimos como pessoal é nossa vivência e os sentidos
que damos a ela, mas está plasmado além do indivíduo e está alinhavado com mais
destinos do que o nosso.
Por isso,
quando fazemos uma constelação sentimos o destino de pessoas vivas e mortas num
mesmo movimento de amor. Às vezes, este amor é cego, porque repete a sina
dolorida de um ancestral para incluí-lo no sistema, às vezes este amor enxerga,
porque respeita a experiência única de cada indivíduo num todo maior.
Na
Constelação Familiar, por exemplo, uma pessoa
chega e pede para que seja constelada a sua relação difícil com o marido, ou a
esposa ou alguns dos pais. Colocamos as pessoas que vão representar seus
familiares e deixamos o movimento da alma coletiva revelar o que está
acontecendo.
Depois de um
tempo, pode ser que um dos representantes olhe para algo além dos outros
representantes. Um evento? Uma pessoa? Geralmente esta pessoa, com o olhar para
o além, não é o tal marido ou a tal esposa, desinteressados, mas a própria
representante da pessoa que é constelada ou algum familiar dela representado. A
nossa questão é: para onde ela olha, para o que ela olha, ou evita olhar?
(É só durante
o processo das constelações que o sistema da pessoa constelada vai revelar para
onde o seu “problema” olha e, quem sabe, forneça alguma solução, mas vou
comprometer a verdade efêmera da fenomenologia - que une o “último” a uma
realidade às vezes trágica e irreconciliável - para refletir outros horizontes
até a melancolia.)
A melancolia com seu desânimo e desinteresse pelo mundo, mergulhada em auto recriminações,
tem algumas afinidades com o luto ou a perda de um afeto pela morte ou por rupturas
nas relações. Mas, se no luto se sabe o que se perdeu, na melancolia já não se
sabe mais. No luto se sofre a dor do choque da libido com um vácuo, um
desamparo, onde existia o amado, até que as águas da tristeza possam fazer o
retorno (da libido) em busca de novos interesses e contornos. Na melancolia já não se sabe mais
para onde a libido estava direcionada. As águas ficaram turvas. Ela cai no
vazio e não sabe mais voltar, nem o que ansiava. Para o que ela olha? O que
quer? Já não se sabe mais.
"Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio - pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice - esta vida era só o demoramento. (...) Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse - se as coisas fossem outras. E fui tomando ideia." (ROSA, João Guimarães. A Terceira Margem do Rio, in Primeiras Histórias)
A Melancolia
e o olhar: (eu sei que
continuar falando de melancolia sem citar o Freud é um pouco de ousadia,
mas quem já não teve seus dias de "demoramento" para nele não seguir
o vazio?) Tenho pra mim, depois de ler algumas obras do Hellinger e
trabalhar com as constelações, que a melancolia e o olhar tem uma relação
estreita. Vou chamar de olhar melancólico, a postura de olhar para além, numa
vivência de constelação. Este olhar olha para algo que já não se sabe mais o
que é, mas que ainda gera dor, saudades e vontade de ir para o mundo dos
mortos, que afinal é o mesmo dos vivos em outra organização.
Temos visto e
sentido – quem experimenta esta técnica terapêutica - que uma morte prematura
dentro do sistema familiar faz com que nosso olhar olhe para alguém que falta, mas nunca para os seus olhos,
porque ele foi esquecido nas brumas do tempo. Quando não se olha para os olhos de
quem se foi se tem um anseio estranho de honrá-lo repetindo seu destino. Assim,
não se está mais tão vinculado à esfera dos vivos e às relações,
consequentemente elas se deterioram. Descobre-se que o marido ou a esposa não
são tão desatenciosos como se supunha, mas que aquele, que por um amor cego
honra o morto repetindo seu destino, não está totalmente neste lado do mundo.
Uma possível
solução: Quando se olha realmente para os olhos do ente morto não se pode
mais ficar preso ao desejo de que houvesse outro destino para ele. Respeita-se
o que aconteceu, aceita a dignidade da sua morte e do seu destino. Respeita-se
o "desejo" do morto de que os seus descendentes sejam felizes e não
repitam a mesma sina por um amor cego (Hellinger, 2007, 2001). O curioso é que
este morto, muitas das vezes, nem é “conhecido”. Pode ser um bisavô, o irmão da
mãe que morreu com dois anos de idade, ou o gêmeo que se foi no parto, e até o
país que nascemos e nunca mais voltamos, e o que chamamos de aborto, mas que na
constelação aparece como um ente que morreu antes de nascer.
A melancolia
aqui - minha hipótese - se desenvolve porque a pessoa olha para o destino
trágico de um parente amado, mas não para os olhos desta pessoa. Olha para o
lugar dele onde ele já não está mais, mas não para ele. Olha-se para a alma
coletiva e aquela perda que pertence a todos daquele sistema, mas não se dá
“nomes”.
Quando se
olha no olho do totalmente outro e seu destino trágico – o que nos exige
"muita" alteridade - todo destino é único e intransferível, mesmo que
se pertença à mesma alma. A vida e a morte deste parente não foram em vão.
Pode-se então escolher viver o próprio enredo, desvinculando-se daquele outro
destino sem que o amor cego legitime o morto por repetição da mesma sina.
A ousadia de
ter e bancar o seu próprio destino e tudo o que isto implica olha para os olhos
do totalmente outro, sem medo ou intenções. O morto pode morrer em paz porque
já não vai mais carregar o peso de se saber “causador” de destinos difíceis
como o dele, dentro da alma coletiva.
O que me parece, ao menos por hora, é que a melancolia não olha nos
olhos assim como o amor cego também não. No luto, como diz Hellinger
(2007:130), o morto é visto e quando ele é visto o amor pode fluir.
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