Qual é o fio capaz de tecer um “novo” coração depois da vivência dolorosa de um triângulo amoroso? Eu não sei...
Em que vértice você esteve? Do amante, do parceiro traído, ou do parceiro traidor? De alguma maneira você já esteve nos três lugares, mas ainda não se lembrou. Tomar consciência dos três papéis que desempenhou não vai aliviar sua dor.
Porém, lembre-se: o Sol o aguarda depois de integrar essas três personagens, ultrapassando-as.
Como?
Talvez, descobrindo o roteiro que o fez viver um triângulo amoroso, podendo seguir em frente. Ainda, assim, não ajuda a recuperar a fé no amor.
Esta exige uma briga feroz com a desesperança, até que o cansaço mostre que o amor nunca desistiu de você.
2) Dinâmicas ocultas
Do triângulo dramático[i] [1] até o triângulo amoroso encontramos dinâmicas familiares atuando e pedindo para serem reconhecidas e transformadas. Ao menos é o que parece estar presente no triângulo mais famoso do Olimpo, com o nascimento de Dionísio, filho da amante Sêmele e de Zeus, marido de Hera.
As dinâmicas familiares por
trás de algumas triangulações consteladas nos mitos, portanto, podem ser a de um filho/a no meio das brigas
amorosas dos pais, ou por imposição deles, ou porque o/a filho/a se arrogou, se achando capaz de salvá-los. Como
aquela menina ou menino "forçada/o" a dizer para um dos genitores que
se separasse do esposo/a traidor. Ou mais dramático ainda, quando esse filho/a “faz a separação” dos pais,
expulsando um deles de casa porque não consegue mais viver no meio da guerra.
Ou essa criança, quando adulta, pode se transformar no próprio marido ou esposa, envolvido/a com um/a amante, porque assim deposita nele/a as dores lancinantes de sua criança interior ferida no meio da briga dos pais. Ou, ainda, porque na posição de “algoz traidor” vai entender os sentimentos do pai ou da mãe que julgou erradamente.
O que chamo de erros de julgamento é o próprio ato de avaliar uma situação sem o distanciamento necessário para ver corretamente, como acontece com quem está diretamente envolvido no que pretende avaliar.
O triângulo amoroso, na vida adulta, pode também ser a atualização de uma dinâmica mais violenta e covarde, como o namorado da mãe de uma criança, que é ou não o seu pai, resolvendo "namorar" o filho/a ou enteado/a. Agora, acrescente a essa violência o ingrediente de uma mãe ou pai machucados, que, ao invés de proteger seu filho/a, competirá com a criança.
Há ainda uma dinâmica mais arquetípica que pode levar à triangulação: a do pai que projeta sua anima (seu lado feminino) na filha, e ela, seduzida por esse encanto, aceita o lugar de ser “melhor” do que a mãe — tudo para receber a atenção (e as exigências) da projeção paterna.
Ou o filho que recebe da mãe a projeção do animus (seu lado masculino) e passa a se sentir maior, mais potente ou mais “adequado” do que o pai.
Há ainda outra dinâmica que pode dar origem à triangulação.
Por exemplo: um pai teve um relacionamento anterior ao casamento com a mãe de sua filha. Essa primeira parceira não foi devidamente respeitada ou incluída — e, inconscientemente, acaba sendo representada pela filha.
Um dos sintomas dessa exclusão aparece quando alguém da família debocha dessa ex-namorada: “Hahaha, uma louca que meu pai namorou! Nada sério!”; “Meu pai era galinha, sabe como é!”; Ou ainda: “Era só sexo. Ele teve um filho com ela, mas foi só isso mesmo.”
Essas frases, ditas com descaso ou humor, muitas vezes escondem um vórtice sistêmico que começa a tragar filhos ou netos para relações triangulares inconscientes.
Nesses casos, a ex-parceira desconsiderada pode “reaparecer” na amante do nosso atual marido ou esposa. Isso não justifica o comportamento do traidor ou da amante, mas revela a presença de alguém que foi excluído — e que precisa ser olhado, incluído, respeitado.
A mesma dinâmica pode ocorrer com um ex-parceiro da mãe que não foi respeitado ou teve seu lugar ignorado.
⚠️ Mas atenção:
Nem sempre o fato de um ex-parceiro não se sentir respeitado desencadeia triangulações nas gerações seguintes. Às vezes, o que está presente é apenas uma tentativa de manipulação ou chantagem emocional por parte do ex-parceiro/a.
As triangulações não são tratadas até aqui como punições kármicas, mas como compensações sistêmicas: movimentos que revelam, de forma simbólica ou dolorosa, que ninguém pode ser excluído dos caminhos que desembocam em nossa vida ou nos atravessam.
Não se trata, portanto, de um estudo sobre causa e efeito. Mas de encruzilhadas nos tecendo.

É eco de um amor infantil que ficou no meio do caminho.
Esse hiato entre os amantes, criado pela configuração do triângulo, muitas vezes empurra a pessoa para um passo aguardado há décadas.
Esse movimento ainda não foi feito porque há raiva, terror, medo e desejo frustrado - como se sentiu na infância - antes de chegar na terra ensolarada dos vínculos afetivos positivos.
Assim, percebemos que nem todo triângulo amoroso é apenas a revelação de pessoas excluídas, ou a repetição de dinâmicas do triângulo dramático da infância. Às vezes, ele representa uma tentativa de voltar a andar em direção à vida - o encontro verdadeiro com quem se ama.
Há também aquela falta terrível — muitas vezes nunca nomeada — de um irmão gêmeo morto, não reconhecido. Essa ausência pode surgir simbolicamente na forma de dois amores — o parceiro e o amante — como se esse “dois” pudesse resgatar o gêmeo perdido do mundo de Hades (da morte).
Todas essas dinâmicas — e tantas outras — podem estar por trás de uma relação triangular. Mas é importante dizer: nem todo triângulo amoroso carrega em si soluções.
Nos casos citados aqui, o bloqueio afetivo entre a esposa, o marido e a amante é tão profundo, que apenas um drama intenso pode romper os muros erguidos ao redor do coração.
Como na carta do Tarot — A Torre fulminada — que nos diz:
“Desta maneira não dá mais”.
Então, Dionísio precisa nascer.
Dionísio: a faceta da psique que anuncia o renascimento.
3) O mito de Zeus, Hera e Sêmele
O triângulo amoroso vivido por Hera, Sêmele e Zeus carrega forças arquetípicas e oferece pistas valiosas para quem busca ajuda para sair desses emaranhamentos.
No mito, Sêmele não quer se casar com o homem que seu pai escolheu para ela. Sente que viverá uma relação sem amor, monótona — como acredita que foi a dos próprios pais.
Então, implora a Zeus que a liberte desse fardo.
Zeus não só atende seu pedido como se apaixona por ela, e os dois iniciam um tórrido romance — até que Hera, rainha do Olimpo, descobre a traição do marido.
Guardadora dos filhos, da casa e da imagem do esposo diante de todo seu impérido — muitas vezes sozinha por longos períodos — Hera se disfarça de ama e se torna confidente de Sêmele.
Com astúcia, convence a jovem amante a pedir uma prova do amor de Zeus: "que ele se revele por inteiro, em sua forma divina". Quando Zeus ouve o pedido de Sêmele, intui as artimanhas de Hera.
O que ele fará?
Ele pode terminar seu casamento — onde os papéis são devidamente cumpridos, mas o amor está congelado, ou já se foi. Pode virar o homem da mortal Sêmele, tentando ser feliz no amor mais uma vez.
Pode ainda encerrar o romance com Sêmele e tentar derreter as muralhas do próprio coração, deixando de lado parte de seus assuntos de Estado para se dedicar mais à esposa e aos filhos.
Em resumo, ele poderia sair das projeções parentais que o tornaram divino e intocável — para viver um amor às claras, dentro de um casamento real.
Mas ele não escolhe nenhuma dessas opções. Porque em todas elas, deixaria de ser o deus do Olimpo, o onipotente senhor da ação e do Estado,situações que o protege do mais temido inimigo!
Não!
Ele não vai redimensionar sua relação com os negócios e com sua imagem grandiosa para se ver vulnerável diante de um amor.
Não mesmo!
Se fizesse isso, perderia tudo aquilo que o protege do medo das mulheres — e tudo o que isso camufla: o fato de ele se sentir um garotinho, sem a força do pai.
Um pai que ele destronou para se tornar o deus do Olimpo — a pedido de Hera, sua mãe-irmã-amante.
Sim, Hera, a amante secreta de Zeus, na juventude, que depois vira esposa, quando os dois congelam o coração. Hera, que também temia o próprio pai e buscava em Zeus alguém que a ajudasse a escapar do controle paterno (Jellouschek, 2017).
Zeus, então, faz sua escolha.
Revela à sua amada amante a sua verdadeira natureza divina.
Sêmele, tomada por Hera — a tomada de consciência da sua vontade de casar e sair do triângulo amoroso — morre.
Um mortal não pode ver Deus diretamente. Ou seja: não pode continuar entre os problemas de seu pai e de sua mãe.
Com um só gesto, Zeus se vinga de Hera — e fulmina Sêmele, queimando-a até o inferno do sofrimento da rejeição.
“Nenhuma delas vai me acessar!” — pensa ele. Volta para casa. E punirá Hera com desprezo ou falsas promessas.
Dirá a si mesmo que Sêmele não teve importância nenhuma. Era muito nova, ou de outra classe social, ou de outro reino. Pode até dizer na roda dos amigos ricos, em gargalhadas:
“Foi só química de pele mesmo!"
Mas a história continua.
Dionísio, o filho no ventre da Sêmele fulminada, é introjetado na panturrilha de Zeus até nascer.
Quando se torna adulto, desce ao inferno para buscar sua mãe.
Porque Sêmele, até então, precisava de tempo...
Precisava nascer mulher — e deixar de ser a menina-amante, namoradinha do pai (Jellouschek, 2017).
4) Do Olimpo às Constelações Familiares
Mulheres e homens podem ser tomados pelo arquétipo de Zeus.
Sua versão bloqueada usa todo o seu poder para se dedicar às suas causas e tarefas. E, mesmo querendo manter uma relação de amor e família, não consegue sustentar um encontro autêntico a dois, às claras.
Os mais familiarizados com Zeus conhecem seu apetite: moças e moços, paixões e conquistas. Ainda assim, era casado com seu primeiro e grande amor: Hera — irmã, mãe e esposa. Isso nos diz que, apesar de ser o arquétipo do homem casado, Zeus ainda mantém laços profundos com uma irmã ou com sua mãe.
Por isso, ainda não sabe amar fora do território familiar.
Para se entregar a uma mulher que não pertença à sua linhagem, precisa de segredo, abrigo escondido — como fazia com Hera antes de torná-la esposa.
Um homem-Zeus é, muitas vezes, um excelente empresário, chefe de família, pai provedor e ausente. Mandão, ríspido e machão, em sua versão mais difícil.
Amigo nos bares, esportista disciplinado — mas em casa, com sua mulher, não é mais o amante que ela escolheu.
Ele se casou e parou de conquistá-la, acreditando que trabalhar duro pela família garantiria seu amor. Será que ele pensa que seu valor é só esse mesmo para as mulheres?
Mas, por que alguns homens-zeus se permitem ser vulneráveis com amantes e namoradas, enquanto se tornam de aço com as esposas?
Por que alguns, ao verem a esposa grávida, se sentem rejeitados como bebês e fogem para os braços de outra mulher?
Alguns até dizem: "preciso transar e ela não quer". Será isso mesmo? Ou não seria: "preciso de outra mamãe porque a minha vai ter meu filho."
Onde estava aquele homem que precisou do amante da sua esposa para se despertar do próprio descaso? Que só depois do divórcio — após anos de sinais que esposa deu — entendeu que ela queria o seu homem de volta?
Sim, nem tudo o que guia sua esposa tem a ver com você, Zeus. Há forças na alma dela que podem levá-la a outro homem, com certeza — ou afastá-la de você — sem que seja sua “culpa”.
Mas aqui falamos dos triângulos amorosos. E não de outras travessias, onde a alma a conduz - e a você - para outros rumos.
No livro, “Sêmele, Zeus e Hera: o papel da amante no triângulo amoroso”, (atualmente com outro subtitulo) - o psicanalista junguiano Hans Jellouscheck[iv][4] analisa com profundidade os desafios de cada uma das três figuras nesse tipo de enredo.
As cartas que ele escreve — para a esposa, para o marido e para a amante — já nos deslocam do jogo de culpas e traições. Porque, ao entrar em um triângulo amoroso, somos todas as figuras ao mesmo tempo: esposa, amante e marido.
Vítima, algoz e traidor.
Pai, mãe e filho em conflitos.
Nos dois triângulos — o dramático e o amoroso — só o centro liberta. Significa sair dos papéis depois de ter aprendido com eles tudo o que havia para aprender.
Por isso, Jellouscheck pergunta a Zeus:
Você é capaz de manter acesa a chama do amor que o uniu a Hera — quando faziam amor escondidos do mundo — agora no espaço às claras do casamento?
Ou vai continuar fugindo para o trabalho, para a TV, para os amigos, tentando escapar da projeção que faz da sua mãe em sua esposa?
Do ponto de vista sistêmico, podemos perguntar:
“Derrubar seu pai, Saturno, e casar com sua mãe — Hera, que também é irmã e cuidadora — fez de você um homem mais inteiro ou o prendeu ainda mais à esfera materna?”
Sua esposa não é sua mãe. Pare de projetar isso nela.
Ser “melhor” do que seu pai para sua mãe, não foi muito peso?…
Isso te deu mais força para amar sua mulher como homem, ou apenas fortaleceu seu personagem de “deus do Olimpo”?
Você consegue reconhecer seu pai exatamente como foi — sem julgá-lo — e perceber que sua relação com ele não define o homem que você pode ser com sua mulher?
Consegue deixar de lado o fascínio de ser “o melhor filho da sua mãe” para então amar uma mulher real? Sem precisar enfrentar seus pais para isso? Sem buscar milhares de amantes para provar sua masculinidade?
Já passou pela sua cabeça que essa busca por muitas mulheres é, psiquicamente, ainda a mesma coisa que estar na esfera do feminino?
Mas Zeus resiste…
Afinal, nada como sentir que se tem o destino de duas pessoas nas mãos, como a carta 15 - O Diabo, no tarot. Que poder! Que glória!
Mas será que você não está sendo afetado por esse enredo, Zeus?
Será que o seu coração terno e sua paixão realmente desapareceram depois do casamento?
Mulheres e homens também podem ser tomados pelo arquétipo de Hera.
Na sua versão endurecida, pela vida difícil de carregar a família pela sua mãe, Hera usa todo o seu poder de dedicação às coisas, pessoas e causas do outro esperando — inconscientemente — que esse outro, um dia, a recompense com amor. Mesmo querendo se entregar e sustentar uma relação verdadeira, sua “doação abnegada” (e possessiva) acaba impedindo o encontro autêntico com o outro, numa relação a dois, clara, e viva.
Hera, ciumenta e vingativa, esconde outras feridas em suas lutas contra as amantes de Zeus? Talvez um movimento interrompido com o pai? Ou uma desconexão com a mãe?
Hera é o símbolo da mulher casada.
Mas que contornos ela toma quando surge uma amante no meio do seu casamento? Se para a amante, Hera é uma megera, talvez esta esteja projetando sua própria mãe nela.
Se para o marido, Hera vira uma interesseira que só queria dinheiro, talvez ele esteja revivendo algo com o pai: será que ele morreu cedo? Foi desprezado em casa?
E nós? Como olhamos para o status de “mulher casada”? Com inveja? Desprezo? Respeito?
Já reparou que Hera não representa o arquétipo da mãe? Isso é Deméter. Hera representa a esposa. E muitas vezes, essa figura é odiada pelas filhas, esquecida pelas mulheres, e debochada pelos maridos.
Será que a mulher no papel de Hera pode ser vista — e se ver — como linda, poderosa, profissional, sensual, sonhadora?
E você, Hera? Como se vê como mulher casada?
Se sua autoimagem nessa posição não for boa, por favor, não culpe a baixa autoestima. Isso te coloca como vítima — mas você é a grande deusa do Olimpo! A esposa de Zeus!
E não deixe que sua mãe te diga: "as mulheres nessa família são sempre abandonadas, traída e enganadas", como se você fosse a coitadinha. Você é poderosíssima, não porque é casada. Se lembra que você é dona do Olimpo e é a rainha da sua vida.
O problema, então, não é sua falta de valor, mas sim o fato de que você ainda vive sob o domínio de projeções e scripts de família, e não na guiança da sua própria história de mulher. Por que se abandonou mesmo, mulher?
Se Hera e Zeus representam o casamento: a instituição social onde projetamos a união ideal entre amor e compromisso — mesmo que essa união ainda seja um campo de guerra - cada um tem sua própria força, que a Sêmele veio despertar.
Hera, quando você era criança, seu pai viajava muito?
Dizia que viria e não aparecia? Te valorizava apenas pelo raciocínio, não pelo sentimento? Ou mentia e traía a sua mãe na sua frente, como quem ensina o seu lugar de "menos-valia"?
Sua mãe o desqualificava o tempo todo, fazendo você desprezar os homens? Disse que você nunca deveria depender de um homem? Ou que falasse com ele para resolver coisas de adultos e do casal?
E aí, Hera? É mais fácil trabalhar com seu pai do que ser filha dele?
A relação com ele era mais fácil do que com sua mãe? Você se sentia melhor que sua mãe para ele?
Quando foi que você deixou de ser filha e passou a tentar ser amante ou sócia do seu pai? Advogada da sua mãe? Empregada da firma dele? Filha de pai ausente? Ou filha de pai idealizado? Qual dessas máscaras você usou para não ter pai?
E com a sua mãe? Por que você não a respeita? É só o resultado do machismo de milênios, mesmo? Ou talvez seja algo mais íntimo?
Por que você julga tanto a sua mãe como o tipo de esposa que ela foi para o seu pai? Estamos falando da mulher casada com o seu pai — aquela, real — que você nunca vai conhecer. Por que você a julga como se pudesse saber como é ser esposa do seu pai?
Bem, se você se sente melhor que ela, se tornando a filhinha do papai… possivelmente vai casar com o filhinho da mamãe.
Ou a sua mãe dividia com você suas dores amorosas? Você era criança e escutava? Por que não saiu da sala? Entendo. Era pequena. É muito difícil para uma criança sair do encantamento de querer ajudar a mãe ferida. Mas agora você é adulta.
Já mandou ela parar? Ela não parou e ainda te excluiu? Entendo.
Você brigou? Chorou? Tentou racionalizar? Mandou ela para a terapia? Não adianta, né? Ela é sua mãe. Não sua amiga, nem sua paciente. Nem sua ré.
Por que você nunca saiu para tomar um sorvete quando ela te torturava com as dores dela de mulher? É proibido para uma filha escutar as dores de amor da mãe. Se ela insiste, saia. Sem briga. Ela vai entender, um dia, que precisa de um terapeuta. Ou não.
E então, Hera?
Aquele gostoso do Zeus apareceu e te fez sentir mulher? Tempos maravilhosos, que agora parecem impossíveis? E ainda por cima ele te trocou por uma mulher mais jovial, que não lava a roupa dele. Que não ganha tanto como você?
Mas… ela não o conheceu jovem como você o conheceu! O que vocês têm é valioso. Se você ainda o ama, como pretende conquistá-lo de volta?
Ah, não?! Tem orgulho?
Eu sei como é. Mas, e se esse orgulho esconde uma menina ferida com o pai? Aí você estaria disposta s bucar uma solução?
Porque está na hora de resolver isso, não acha?
Ou será que você casou com Zeus apenas para escapar da infelicidade da sua família? E só agora percebe que ele não é o príncipe salvador, mas um homem comum se fazendo de bolachinha mais recheada do Olimpo? Bem… por que se vingar da amante que vive o amor que você ainda não teve coragem de viver no casamento?
Mas Hera… você é corajosa.
Nestes tempos em que o casamento virou, piada com o risco de virar sonegação de pensão, você ainda acredita nele. Minhas reverências.
E lembre-se: a Sêmele também vive em você. E ela também tem algo a oferecer.
Você o amava muito, Hera?
Ainda ama?
Por que, então, fechou o coração assim que se casaram? Não precebeu como isso aconteceu?
Foi aí que ele ameaçou a sua dor como fez o seu pai com você? Foi quando você percebeu que estava projetando nele aquele pai ausente, ou o péssimo marido da sua mãe?
Ele não é seu pai, Hera. Pare de projetar isso nele. E nada disso justifica a traição dele, mas...
Quando foi que você virou a mãe do seu marido?
E quando começou a esperar que ele correspondesse a todas as suas expectativas escritas em listas invisíveisw Nunca pensou em pedir o que queria?
Ah, você acha que ele deveria ter adivinhado, como uma mãe que adivinha as necessidades de um bebê?
Porque você adivinha? Ué, ele tem que ser igual a você? Então você segue o protocolo de “excelente esposa”? A “mãe perfeita”?
Essas tarefas todas te ajudam ou impossibiltam o acesso ao seu coração ferido?
E a sua mãe, Hera? Cadê a sua conexão com o mundo feminino?
Você viveu sob o mesmo teto que ela — mas foi o pai, por falta ou por excesso, que moldou sua feminilidade?
Como você tem feito para tomar o pai como pai, se você ainda não se conectou com sua mãe como filha?
São tantas as dinâmicas que nos levam a fechar o coração, não é?
Qual é a sua, a minha, a de todas nós, mulheres corajosas que — como Hera — decidem levar uma relação de amor até o casamento?
Por que muitas de nós preferem a segurança financeira à vulnerabilidade do amor? É medo do amor ou é medo da entrega?
Por que deixamos de seduzir o namorado que virou nosso marido, mas exigimos dele total atenção?
Por que escolhemos homens só para serem pais dos nossos filhos — mas não nossos amantes?
Se vocês, como casal, combinaram assim, tudo bem. Mas se você quer viver o amor na relação, algo precisa mudar.
Por que algumas mulheres esqueceram de suas próprias “coisas de estado” e passaram a cuidar apenas das dos seus maridos — com tamanha abnegação que seriam capazes de explodir uma galáxia de tanto rancor?
Sim, é cultural. Eu sei. Vivemos em uma sociedade que ensina que o casamento é responsabilidade da mulher, e não do casal.
Dizem às meninas: “o casamento te fará feliz”. E aos meninos: “você fará uma mulher feliz”.
E olha que curioso: há mais homens casados do que mulheres querendo casar novamente. Então, quem realmente é feliz no casamento? E quem não aguenta mais mantê-lo, porque fazia tudo sozinha?
A Hera que habita cada mulher pode mudar essa balança.
Quando foi que você deixou de cuidar de si?
Não me diga que “marido e filhos” são suas coisas. Eles são coisas do casal. Suas “coisas” são suas paixões, seus sonhos, sua vida.
Os homens cresceram achando que manter o casamento é tarefa da mulher. Que saco, né?
Eles também foram vítimas de uma cultura que não exige que sejam bons maridos.
Aliás, muitas vezes um homem pode ser ótimo marido e pai — mas culturalmente isso não é exigido como acontece com "as belas, bonitas e do lar".
É por isso que a alienação parental costuma recair mais sobre os pais do que sobre as mães. Não só porque muitos homens abandonam mesmo, mas porque nem a sociedade acredita que homens devem ser bons maridos e bons pais.
Mas falemos de você, Hera.
Se, durante o casamento, a mulher cuida de si, ela não é vista.
Mas ela gera vida — e no capitalismo, essa vida não é paga.
Por isso, viva o feminismo — que luta para igualar os papéis entre homens e mulheres.
E então, Hera: onde está aquela jovem apaixonada que agora você enxerga no rosto da amante “sirigaita” do seu marido?
Xinga ela, sim! Chama de brega, puta e vulgar!
Mas… quando foi que você deixou de ser tudo isso também?
Puta, brega, exibida, sentimental, feliz, viva?
Deixa a Sêmele que vive em você beijar o primeiro homem que olhar pra você com carinho. Solta esses cabelos e vai desfilar sua beleza pelo Olimpo. Talvez assim, como amante de outro, você se torne tão vil quanto seu marido e aquela “estraga-lares”. E só assim, quem sabe, possam voltar à relação.
Porque, afinal…
Gambá se casa com gambá. Mas santa orna bem com galinha.
E o perdão?
Ah não! Que isso, pelo amor de Deus. Nada de perdão. Quer ficar ainda mais santa para um canalha? É muito degrau para subir até você.
Se vinga com amor.
Como diz Hellinger (2007): “Vingança com amor significa revidar um pouco menos — assim, o equilíbrio se restabelece.” (Hellinger, 2007).
4.3 Sêmele
Mulheres e homens podem estar tomados pelo arquétipo de Sêmele. Sua versão bloqueada coloca todo o seu amor profundo e verdadeiro em uma relação “impossível”, como forma de fugir da monotonia que imaginam encontrar no casamento. Mesmo desejando amar e casar, assumem mais o papel de salvadora, vítima e algoz do que de mulher-amante. Precisam de tempo para escolher, para amadurecer, para estar prontos para um encontro autêntico de amor às claras — numa rotina onde se é protagonista.
Sêmele também teve emaranhamentos familiares que a levaram a se envolver com um homem muito mais velho e casado. Não precisa ser mais velho de fato. Basta que tenha algum impedimento simbólico ou concreto que a mantenha no lugar de “menina-amante” — até que esteja pronta para se tornar mulher e assumir a Hera dentro de si. A amante que quer também ser esposa.
Quando foi que você — homem ou mulher no lugar de Sêmele — resolveu salvar seu pai ou sua mãe do casamento deles? Quando descobriu que um sorriso enviesado seduzia mais seu pai do que as queixas da sua mãe? Quando começou a dizer que sua mãe competia com você, sem perceber que seus pais estavam usando você para preencher as lacunas da relação entre eles?
As Sêmeles permanecem entre as rajadas de amor insatisfeito, sustentando o que o casal não consegue viver: as transformaçõe que o amor faz em um casamento.
Sim, seu amor é verdadeiro, Sêmele. Você desperta o amor — mas talvez ainda não tenha coragem de levá-lo até o fim, dentro de uma relação compromissada.
Pela sua experiência com um pai ou mãe controladores, prefere a liberdade é do que acompletude, confundindo esta última com possessividade.
E no caso de um rapaz sob o arquétipo de Sêmele: quando seu corpo jovem ou sua inteligência pareceram mais desejáveis do que o seu pai ausente ou bêbado? Ele ser frio com sua mãe justifica você querer ser melhor para ela do que ele foi? Já percebeu que isso o coloca no lugar do amante da sua mãe, e não do filho?
É mais seguro ser filho do que rival do seu pai.
Quando foi que seu pai expulsou você de casa ou o chamou de “filhinho da mamãe”? Quando começou a achar que tinha um problema com ele, sem notar que estava no meio das mágoas da sua mãe com o marido dela?
Quando foi, Sêmele — homem ou mulher — que você desejou uma “mãe boa”, porque a sua projetava em você suas próprias frustrações? Ou quis um “pai bom” porque ele fazia da sua mãe uma sombra para você?
Você nunca percebeu que flertava inconscientemente com o genitor do sexo oposto, como uma criança que não sabe o que isso significa? E que esse pai ou mãe, esse amante simbólico, projetava em você tudo o que não viveu com a própria mãe e no próprio casamento?
Quando foi que você foi convocada a ocupar esse lugar?
Como diz
Marie-Louise Von Franz:
“A atmosfera invisível é muito mais poderosa do que aquilo que se vê. Por isso Jung nunca escreveu muito sobre pedagogia. Ele dizia que não faz muita diferença o que você diz ou faz com os filhos. O que importa é que você seja saudável, irradiando assim uma atmosfera saudável e positiva. Nesse caso, não faz muita diferença o que se diz. De qualquer forma, os filhos não ouvem mesmo. Eles reagem ao que está por trás. As crianças, por assim dizer, ainda estão nadando no inconsciente, na atmosfera de uma situação, e é a isso que reagem.”
Ser traída em um casamento e depois virar amante de um homem (ou mulher) casado, não fez você lembrar da dança das cadeiras? Uma hora você é a sua mãe se sentindo desprezada pelo seu pai, ou, como você se sente agora com seu marido e a outra. E na próxima cadeira, você é a amante, ou aquela menina que você foi e sobre a qual o pai depositou toda a atenção que não dava à esposa, a sua mãe.
Está pronta para sair desta triangulação imposta: vítima, algoz e salvador? Marido, esposa, amante? Hera, Sêmele e Zeus?
Está pronta para ser tomada pelo seu lado Hera, projetado em sua mãe, e assumir o desejo de uma relação mais inteira?
Está pronta de aceitar que os homens podem ser fortes, como Zeus e não serem possessivos ou invulneráveis como foi o seu pai?
Está ficando pronta para propor para o seu amante casado um namoro sério, só você e ele? Vai aguentar a culpa? Ele não é seu pai, é um homem. E você está pronta para aguentar a culpa da dor que vai causar na esposa do seu amante?
Ou você acha que não causou nenhum dano até agora, se mantendo escondida? A esposa do seu amante não é a sua mãe, é uma mulher como você. Ela não é a sua rival, porque o seu amante, marido dela, não é um prêmio.
Se vocês três estão nesta relação, os três estão sendo forçados a aprender algo. Pode até ser que decidam viver o triângulo às claras, solenemente, o que não impedirá a dor e nem resolverá a questão.
A mulher ou homem rejeitado no triângulo doloroso terá que refazer a vida afetiva como todos os outros dois arquétipos integrados e transformados dentro dele. E o casal "vencedor" também. Porque a dança das cadeiras, de quem não integrou esses personagens, continua.
O traidor ou traidora terá que lidar com a dor que causou em alguém que ama. Terá que bancar o golpe que executou e fazer uma nova relação com a esposa (ou marido) ou o/a amante!
A amante, ou o amante, se conseguiu o parceiro de outro para si terá que ter coragem de não sabotar a futura relação com ciúmes doentios, por conta da culpa de fazer o antigo parceiro sofrer e perder a relação.
Todos sairão feridos, mas livres do encantamento inconsciente que os levou a esta situação. Ou não. Às vezes, repetimos este jogo dramático várias vezes até nos libertarmos dele.
Mas Sêmele, você
foi rejeitada por Zeus. Está pronta para deixar o inferno da rejeição fazer
efeito em você?
Consegue sentir esta dor e ao mesmo tempo reconhecer o amor dele por você?
Mesmo não tendo ficado com ele, está pronta para deixar esta dor transformar você em mulher-amante?
Para o homem que é
amante de uma moça casada é a mesma pergunta: está pronto para virar homem ao
invés do menino-amante?
O que você buscava em um homem que tinha uma esposa?
O que você buscava em uma mulher que tinha um marido?
A mãe boa ou o pai bom que não conseguiu encontrar nos seus próprios pais — porque, sem perceber, tornou-se rival deles?
Se o seu amante estivesse sozinho, disponível só para você... o que faltaria? Faltaria a prisão invisível onde você ancora seus relacionamentos triangulares, aquele enredo em que você é a salvação de alguém — e a culpada por tudo também.
Faltaria a encenação da amante de mentirinha de um genitor frustrado, papel que você assumiu sem saber?
Faltaria o lugar da rival simbólica do outro genitor — que projeta em você sua raiva, como se você fosse, de fato, a amante real?
Se esse for o caso, talvez seja hora de você refazer o caminho do amor em direção aos seus pais.
E parar de ser o para-raios das dores amorosas que nunca foram suas.
Eles não precisam mudar. Mas você, sim.
Por isso, Sêmele, você foi atingida em cheio pelos raios orgulhosos do medo de Zeus. Um raio divino. Como aquele que atinge A Torre no Tarot — o mesmo raio que destrói o castelo das ilusões para revelar o que é verdade.
Esse raio caiu sobre você para encerrar uma ligação invisível: a dependência emocional que seu pai (ou mãe) criou com você.
E se seus pais nunca brigaram? Talvez seus avós tenham brigado. A Constelação Familiar já nos mostrou que os emaranhamentos podem ser muito mais antigos. Você nem era nascida — mas o destino deles chegou em cheio no seu.
Esta é a sua chance de renascer como mulher, Sêmele.
Todo nascimento dói. E leva tempo. O tempo de Dionísio — seu filho — crescer.
O tempo da regeneração, da alquimia, da travessia do submundo. Aquele que um dia voltará para buscar você no inferno da rejeição, e a levará de volta à vida. Ao menos foi isso que Jellouscheck disse com ternura à Sêmele, em seu livro.
Não porque seu filho fará o papel do seu filho-amante. Ele casou com Ariadne e está muito bem, obrigado. Mas porque você verá que ele é um semideus, cuja mortalidade, a vulnerabilidade e o envelhecimento não têm medo da inveja dos deuses. Porque nele tudo se misturou: o trágico e o sagrado, o gozo e a dor, a luz e o delírio. A visão de um semideus não é apenas a do fruto de um deus com um mortal. É a reunião de todas as partes rejeitadas, carne de sua mãe que se queimou, e renasceu em vinho. Como faz o amor, depois de um tempo, sobre tudo o que um dia passou.
Mas ainda dói, mesmo depois de tantos anos, não é, Sêmele?
Talvez te conforte saber que você, Zeus e Hera estiveram no caminho do amor verdadeiro. Porque ninguém sai como entrou, depois de passar por vocês três.
Então siga.
Dê o próximo passo.
Chegue ao quarto.
[i][1] Triângulodramático: Jogo transacional que explica os papéis de vítima, algoz e salvador. Geralmente atuamos os três papéis, mesmo que nos identifiquemos mais com um deles.
[ii][2] Amor interrompido ou movimento interrompido: Bert Hellinger observou que se, por algum motivo, a criança não pode acessar o pai ou a mãe quando ainda era muito jovem, para não sofrer, e muitas vezes para não enlouquecer, interrompe o movimento que a levaria ao pai ou à mãe que não está presente. Pode ser a morte prematura dos pais, pode ser que a mãe, o pai ou a própria criança ficou internada sem poder ter contato. Pode ser uma viagem longa, que separou a criança dos pais etc.
[iii][3] Acho que na série Outlander somos conduzidos muito mais para os ensinamentos do conjunctio – casamento interior – na jornada feminina, do que para a triangulação amorosa, embora a Claire Beauchamp, em sua jornada no tempo, quando casou com o James Fraser no século XVIII, era casada, no século XX, com Frank Randall.
[iv][4] Hans
Jellouscheck. Sêmele, Zeus e Hera: o
papel da amante no triângulo amoroso. São Paulo, Ed. Cultrix: 1987.